Vivemos numa época marcada por grandes transformações do planeta provocadas pela ação humana. São tempos de mudanças extremas. Secas severas, enchentes devastadoras, incêndios descontrolados e extinções em massa de espécies desafiam os limites das ciências. Neste momento em que precisamos combinar todas as formas de compreensão do funcionamento da Terra em busca de soluções para as crises existentes, a academia ainda resiste a reconhecer o status científico dos conhecimentos indígenas.
O ceticismo das estruturas acadêmicas não é algo novo. Por séculos, os sistemas de conhecimentos originários vêm sendo rotulados como místicos ou folclóricos, apagados ou apropriados. Ao reafirmar a universalidade e superioridade do saber científico ocidental, a academia impulsiona a devastação de saberes milenares. Além de uma injustiça histórica, o epistemicídio — como um mecanismo estruturante do colonialismo — também representa um desperdício de conhecimentos milenares e cruciais diante de crises sem precedentes na história da Terra.
O Brasil tem um papel central neste contexto. Possui a maior biodiversidade do planeta e uma extraordinária diversidade sociocultural, abrangendo mais de 300 povos indígenas e 28 povos e comunidades tradicionais legalmente reconhecidos. Esses povos moldaram, enriqueceram e mantiveram os ecossistemas brasileiros por pelo menos doze mil anos antes da invasão europeia. Por este motivo, são guardiões de um conhecimento ecológico profundo sobre como cuidar da biodiversidade para as futuras gerações.
Não é por acaso que as Terras Indígenas (TI) demarcadas nos biomas brasileiros perderam apenas um por cento de sua vegetação nativa nos últimos 30 anos, enquanto as terras privadas perderam quase 20%. Perante esses números, reconhecer o quanto temos que aprender com os sistemas de conhecimento indígenas é um passo fundamental na superação de séculos de epistemicídio.
Avanços científicos e filosóficos
Recentemente, muitos cientistas indígenas vêm adentrando as universidades e abalando suas estruturas hegemônicas ao apresentarem outros modos de conhecer e investigar que destoam do conhecimento ocidental.
Mesmo com pressupostos distintos, cientistas indígenas compartilham com seus equivalentes acadêmicos os mesmos objetivos de compreender, explicar e prever a realidade. Suas observações e experimentações, no entanto, alimentam teorias validadas por conceitos, categorias e modelos explicativos próprios. Assim, cientistas indígenas são especialistas de seus povos que produzem, aplicam e disseminam conhecimentos compartilhados ao longo de centenas de gerações em seus territórios de saber.
Ao longo de séculos, a ciência acadêmica também trouxe uma profunda compreensão sobre os processos que estruturam e mantêm a biodiversidade. Ancorada no realismo científico das ciências naturais, a ecologia acadêmica busca desvendar mecanismos universais que governam o funcionamento da natureza por meio de teorias gerais, experimentos controlados, observações sistemáticas, modelos matemáticos e testes estatísticos. Explicações e métodos indígenas que não se enquadram necessariamente nas teorias e práticas acadêmicas são desvalorizados. Então, o que perdemos ao ignorar outros sistemas de conhecimento distintos dos ocidentais?
As ciências indígenas compreendem a Terra de outras formas. Para as ciências indígenas, as florestas, os rios, os animais e as plantas não são objetos de estudo ou recursos disponíveis para suprir os desejos humanos. A natureza é composta de gentes vivas, dignas e inteligentes, sujeitos de direitos com quem nossa existência está entrelaçada profundamente. Essa percepção se difere essencialmente da noção de natureza desprovida de cultura e humanidade, inventada pelo Ocidente e utilizada pelas “ciências naturais”, que fundamenta um modo de vida consumista e de exploração desenfreada de recursos ditos naturais.
O caráter integrativo dos conceitos indígenas, portanto, transcende tensões disciplinares das ciências “humanas” e “naturais”, as quais limitam a nossa capacidade de gerar respostas científicas que viabilizem a coexistência entre humanos e não-humanos. Ao promoverem pontes entre domínios acadêmicos diversos, as ciências indígenas podem funcionar como um hub conector de diálogos interdisciplinares que impulsionam a coexistência produtiva de múltiplas formas de perceber e conhecer a natureza.
A expressão de corpo-território exemplifica como conceitos indígenas funcionam como conectores de diálogos. Essa noção vai além do senso comum de posse, já que promove uma ideia de território que conecta organicamente as pessoas numa teia de relações com os outros seres.
A compreensão de conceitos indígenas em seus contextos específicos abre a nossa percepção para as dimensões cosmopolíticas. A proposição cosmopolítica que emergiu dentro da filosofia da ciência se refere a negociação e possível coexistência de mundos, sejam eles produzidos pelas ciências “naturais” ou “humanas”, ocidentais ou indígenas, ou pelos humanos ou mais-que-humanos.
Conhecimento para a regeneração da Terra
Os saberes indígenas sobre como podemos manter a natureza resultam de milênios de conhecimentos e práticas validadas coletivamente e oferecem insights preciosos para conservação e restauração ecológica. Reconhecer os ensinamentos trazidos por essas ciências originárias e plurais é mais do que um gesto político de reparação. Esse gesto nos amplia a percepção sobre outras formas possíveis de explicar a realidade. Também nos convida à reflexão cosmopolítica sobre como construir consensos entre mundos distintos.
Práticas de coexistência para os povos indígenas da Amazônia podem ser exemplificadas pelo manejo e cultivo das roças e florestas no Alto Rio Negro que conservam e ampliam a biodiversidade. Para as mulheres indígenas, exímias especialistas nos sistemas agrícolas tradicionais — reconhecidos como patrimônio cultural imaterial — um roçado bonito é aquele com muitas variedades de mandioca, pimenta e plantas alimentícias. Para além da produtividade, a diversidade de plantas na roça é conhecida, valorizada e incentivada por essas mulheres. Elas também dominam conhecimentos e técnicas sofisticadas de identificação e produção de alimentos e bebidas feitas com variedades específicas de mandioca que concentram uma substância tóxica e demandam processamento antes do consumo.
Entre o povo Potiguara, a ciência dos solos nos oferece novos caminhos para o manejo e recuperação de solos agrícolas em um contexto devastado pelas usinas de cana-de-açúcar no litoral norte da Paraíba. Enquanto os mapas oficiais apresentam somente um tipo de solo, conhecedores Potiguara consideram ao menos 4 tipos distintos de solos utilizados para a agricultura em seu território. Este refinamento ilustra como as ciências indígenas são indissociáveis de modos de vida específicos de cada povo e abrem uma janela de oportunidades para a restauração ecológica alinhada com o contexto local.
Reconhecimento e direitos intelectuais
Os desafios para o florescimento pleno das ciências indígenas persistem. Primeiro, é necessário garantir direitos territoriais e intelectuais, combatendo o extrativismo intelectual e a biopirataria, e garantindo a integridade física e intelectual de especialistas indígenas em seus territórios.
Depois, para transformar um sistema educacional que ainda reproduz largamente o epistemicídio, é fundamental superar o racismo estrutural e abrir espaços institucionais seguros e confiáveis, com apoio adequado e contínuo às epistemologias indígenas. Também é preciso erradicar mecanismos de opressão implícitos na linguagem e em posturas acadêmicas. Nessa frente de transformação da cultura acadêmica, nomear os sistemas de conhecimentos indígenas como ciências significa reconhecer esses conhecimentos como tão complexos e válidos quanto aqueles produzidos pelas ciências acadêmicas.
Mesmo com a aprovação do Tratado sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais Associados da OMPI, que aborda pela primeira vez os direitos intelectuais dos povos indígenas em um acordo formal internacional, muito permanece a ser feito. Instituições acadêmicas em todo o mundo seguem usando o conhecimento indígena sem dar o devido crédito a seus detentores, impedindo a sua visibilidade e a partilha justa e equitativa de benefícios oriundos dele.
“Reflorestar mentes”
Reconhecer a autonomia intelectual dos povos indígenas sobre seus conhecimentos é apenas um passo inicial e demanda políticas estruturantes de fortalecimento da soberania epistêmica dos povos. Projetos e iniciativas existentes nas universidades precisam ser valorizados e amplificados, tais como aquelas promovidas pelo Laboratório Misto Internacional sobre Sustentabilidade IDEAL (UFPB-IRD), pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (UFAM) e pelo Useflora.
Nenhuma política ou estratégia, porém, será suficiente se não houver uma mudança mais profunda: a transformação das formas de pensar que ainda erodem as ciências dos povos originários ao subordiná-las ao pensamento hegemônico. Como afirmam as mulheres indígenas da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – ANMIGA, precisamos antes de mais nada “reflorestar mentes”.
O que temos a regenerar não são apenas os territórios ecologicamente devastados e socialmente vulneráveis. Sobretudo, precisamos transformar os modos de pensar que nos colocaram à beira dos limites do planeta. O reconhecimento das ciências indígenas como protagonistas da regeneração planetária é parte de nossa conscientização de que a diversidade de formas de existir e conhecer é base inegociável para a persistência da vida na Terra.