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Solidariedade dos escravizados: a história da dissidência na Ucrânia

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Solidariedade dos escravizados: a história da dissidência na Ucrânia

Vyacheslav Chornovil, Mustafa Dzhemilev (1990s). Source: The Sixties Museum in Kyiv

 Vyacheslav Chornovil, Mustafa Dzhemilev (década de 1990). Fonte: Museu dos Anos Sessenta em Kiev, usada sob permissão

Por Radomir Mokrik

Esta história faz parte de uma série de ensaios escritos por artistas ucranianos intitulada “Cultura recuperada: vozes ucranianas organizam a cultura ucraniana.” Esta série é produzida em colaboração com a Associação Folkowisko/Rozstaje.art, graças ao cofinanciamento dos governos da República Tcheca, Hungria, Polônia e Eslováquia por meio de subsídio do Fundo Internacional de Visegrad. A missão do fundo é promover ideias para cooperação regional sustentável na Europa Central. Este texto foi traduzido do ucraniano por Iryna Tiper e Filip Noubel.

Em seu ensaio “O poder dos impotentes, o escritor tcheco Vaclav Havel certa vez explicou por que o termo “dissidente” o incomodava. Ele disse que dava a impressão de ser um “membro profissional da oposição”, embora, na realidade, aqueles que eram chamados de “dissidentes” fossem, antes de tudo, pessoas com suas profissões, famílias e medos. O movimento dissidente dentro do bloco soviético (1922-1991) se formou de diferentes maneiras. Na Tchecoslováquia, foi a música underground; na Polônia; em fábricas; e na Ucrânia, em noites literárias. No entanto, em 1975, ganhou um denominador comum sob a forma dos Acordos de Helsinque e o movimento dos Direitos Humanos.

Na Tchecoslováquia, dissidentes locais criaram o “Carta 77, ” na Polônia, fundaram o Movimento pela Proteção dos Direitos Humanos e dos Cidadãos (em polonês, ROPCiO), e na URSS, Grupos Helsinque (grupos de monitoramento dos direitos humanos) começaram a surgir — em Moscou, Yerevan, Tbilissi, Vilnius e Kiev. Na Ucrânia, os movimentos nacionais que lutaram contra o império Soviético estavam entrelaçados com tentativas de proteger os direitos humanos. Ex-prisioneiros políticos do regime soviético, como Mustafa Dzhemilev, Yosyf Zisels, e Miroslav Marynovych, compartilham as suas experiências de luta contra o império, antes e agora.

O grupo ucraniano de Helsinque: ‘Eu me recuso a ter medo’

Yosyf Zisels, um judeu ucraniano, assim ele se define, descreve o significado do grupo ucraniano de Helsinque. Ele passou um total de seis anos em campos de trabalho no final dos anos 1970 por participar do movimento dos direitos humanos.

Human rights, this was the new essence of the dissident movement. With this, Ukrainian dissidents entered the space of international human rights protection. The fact that the UHG aligned itself with international human rights standards was extremely important; it meant that Ukrainians subordinated their aspirations to the general aspirations of Europe and the world. It was a story about democratization, about human rights. It was a symbolic, but important step.

Direitos humanos, esta era a nova essência do movimento dissidente. Com isso, os dissidentes ucranianos entraram no espaço da proteção internacional dos direitos humanos. O fato de o grupo ucraniano de Helsinque ter se alinhado com os padrões internacionais de Direitos Humanos foi extremamente importante; isso significava que os ucranianos subordinavam suas aspirações às aspirações gerais da Europa e do mundo. Era uma história sobre democratização, sobre direitos humanos. Foi um passo simbólico, mas importante.

Zisels acrescenta que o desejo de demonstrar a falsidade do sistema soviético também era importante, de modo que o Ocidente não tivesse ilusões de que seria possível discutir a URSS em um contexto verdadeiramente legal”. “Isso lembra um pouco as ilusões que ainda podem ser encontradas na Europa em relação à Rússia”.

O grupo ucraniano de Helsinque foi fundado em 1976 por apenas 10 pessoas corajosas que compreenderam que esta iniciativa as levaria à prisão. Mesmo assim, decidiram avançar na busca de Interesses individuais, nacionais e pan-europeus.

Unir-se à lógica europeia de proteção dos direitos humanos significava que os defensores ucranianos precisavam fazer uma pergunta difícil: sua luta era, primordialmente, pelos direitos humanos universais ou também pelos direitos nacionais do povo ucraniano? Afinal, muitas pessoas foram pressionadas a se unir à dissidência, principalmente devido à política de Moscou, que marginalizava a cultura ucraniana e discriminava de forma grosseira a língua ucraniana.

O filósofo e estudioso de religião Myroslav Marynovych recorda como se juntou ao grupo ucraniano de Helsinque em novembro de 1976. Ele sentiu o peso da discriminação nacional; assim, quando surgiu uma iniciativa específica, decidiu agir, dizendo: “Essa falsidade onipresente e a mentira do sistema me causavam nojo. Eu me recusei a ter medo”.

O nome de Marynovich apareceu ao lado de outras nove pessoas — que declararam abertamente que estavam fundando legalmente um grupo de direitos humanos. Para Marynovich, a combinação do nacional e do universal era bastante orgânica:

Of the five groups that existed in the USSR, only the Moscow group was wholly ‘democratic.’ It raised questions exclusively about civil liberties. But all the other groups in other Soviet republics also fought for their national rights. The Moscow dissidents did not like this. That is, they did not block documents from us, but they scowled, saying: ‘Why are you doing this? You are mixing it all up… Focus on civil rights.’ The dual nature of the Soviet system — as a totalitarian regime and a Russian empire —  was rejected in Moscow even in these dissident circles.

Dos cinco grupos que existiam na URSS, apenas o grupo de Moscou era totalmente democrático. Levantava questões exclusivamente sobre as liberdades civis. Mas todos os outros grupos nas outras repúblicas soviéticas também lutaram pelos seus direitos nacionais. Os dissidentes de Moscou não gostavam disso. Quero dizer, eles não nos bloquearam documentos, mas faziam careta, dizendo: ‘Por que estão fazendo isso? Vocês estão misturando tudo… concentrem-se nos direitos civis. A dupla natureza do sistema soviético — enquanto regime totalitário e império Russo — era rejeitada em Moscou mesmo nestes círculos dissidentes.

Solidariedade dos escravizados

Mustafa Dzhemilev serviu como líder do movimento nacional dos tártaros da Crimeia por muitas décadas. Ele nasceu na Crimeia em novembro de 1943, mas seis meses depois — como toda a nação tártara da Crimeia — foi deportado à força da Crimeia à Ásia Central pelas autoridades soviéticas. Dzhemilev usa a palavra “genocídio” várias vezes durante nossa conversa, e isso não é uma metáfora.

Os tártaros da Criméia sobreviveram aos horrores da ocupação, mas sua experiência de viver sob o regime soviético também não foi muito melhor:

Of course, during the Nazi occupation, people saw horrors — the killing of Jews, mass executions, and violence. There can be no illusions, both Nazism and communism are evil. And the Crimean Tatars have a different fate: their deportation of the Crimean Tatars was in no way connected with their behavior or actions. It was part of Russia’s overall strategy towards Crimea and the Crimean Tatars in particular. Crimea was to become a completely Russian place. This ‘relocation’ became genocide for us. Everything related to the Tatars was destroyed — mosques, cemeteries, settlements were renamed. The goal was to destroy the people.

É claro que, durante a ocupação nazista, as pessoas viram os horrores — o assassinato de judeus, execuções em massa e violência. Não se pode ter ilusões: tanto o nazismo quanto o comunismo são males. E os tártaros da Crimeia têm um destino diferente: a deportação dos tártaros da Crimeia não estava de modo algum relacionada com o seu comportamento ou atividades. Fazia parte da estratégia da Rússia em relação à Crimeia de modo geral e, em particular, aos tártaros da Crimeia. A Crimeia se tornaria um lugar completamente russo. Este ‘deslocamento’ tornou-se genocídio para nós. Tudo relacionado aos tártaros foi destruído — mesquitas, cemitérios, assentamentos foram renomeados. O objectivo era destruir o povo.

A vida de Dzhemilev se tornou uma luta constante pelo direito de voltar para casa, que logo se tornou a raiz de sua dissidência. Mas ele enfatiza que rapidamente passou do nacional para o universal.

O movimento Tártaro da Crimeia da década de 1960 foi “radicalizado” por um ucraniano, Petro Hryhorenko. “Foi Hryhorenko quem explicou que não devemos pedir, mas exigir. Nenhum tártaro fez tanto pela nossa causa nacional como Petro Hryhorenko”, recorda Dzhemilev.

Os dissidentes — ucranianos, judeus ou tártaros da Crimeia — defenderam a sua própria cultura, mas isso não impediu o apoio mútuo; na verdade, reforçou-o.

Foi nos campos que o “internacionalismo“declarado pelo Partido comunista soviético tomou forma real. “O apoio das pessoas dos países Bálticos e do Cáucaso era evidente; estávamos na mesma sintonia. Mas o mais forte foi a união do Tridente e da Estrela de David”, disse Dzhemilev.

Myroslav Marynovych continuou a explicar a solidariedade ucraniano-judaica: “os judeus que acabaram nos campos geralmente já apoiavam o Estado Nacional de Israel. Eram pessoas com consciência nacional, para eles a posição dos ucranianos era compreensível. Porque ambos simplesmente amavam o seu povo”.

Josyf Zisels concordou e enfatizou como a influência do movimento nacional ucraniano foi benéfica para ele pessoalmente:

I am a Jew. My whole family is Jewish. This is my culture and my identity. But both my dissidence and my general development later led me to more universal, democratic things. And Ukrainian dissidents told me indirectly but implicetly that you cannot bypass this path and ignore your ethnic and religious trace. You must live through them. You can then go further, reach the universal level. But you cannot pretend that this does not exist. That is why I then took a step back […] created the first specifically Jewish organization after my second term.

Sou judeu. Toda a minha família é judia. Esta é a minha cultura e a minha identidade. Mas tanto a minha dissidência como o meu desenvolvimento geral me levaram mais tarde a coisas mais universais e democráticas. E dissidentes ucranianos me disseram indiretamente, mas implicitamente, que não se pode contornar este caminho e ignorar o seu traço étnico e religioso. É preciso vivenciá-los. Só então é possível seguir adiante e alcançar um nível universal. Mas não se pode fingir que isso não existe. Foi por isso que dei um passo atrás […] criei a primeira organização especificamente judaica após o meu segundo período na prisão.

A observação de Myroslav Marynovich de que os dissidentes russos não gostaram quando a questão da identidade nacional foi discutida não deve ser vista como uma reescrita retrospectiva da história. Sem menosprezar de modo algum o papel dos dissidentes de Moscou e de figuras como Andrey Sakharov, a questão da identidade nacional não era algo que os incomodasse. Afinal, os russos não eram alvo de discriminação cotidiana simplesmente porque falavam a sua própria língua; não eram afetados pelo antissemitismo latente, e o ímpeto da sua dissidência não era o desejo de regressar a qualquer ‘terra roubada’.”

Colapso, desintegração, descolonização?

A principal questão hoje na Ucrânia é, sem dúvida, a derrota da Rússia na guerra. Como será — desintegração, colapso, descolonização? A descolonização é uma ideia comum na Ucrânia que alguns pesquisadores estão tentando popularizar no Ocidente.

Os ex-presos políticos ucranianos são, em geral, otimistas cautelosos.

Joseph Zisels afirma que mantém contato com alguns velhos conhecidos na Rússia:

Of course, I sympathize with them, but I also tell them that with such a history, within such borders, Russia cannot become a democratic country. At one time, I wanted the collapse of the USSR, because I understood that a democratic USSR simply could not exist. But they are still building it there.

É claro que simpatizo com eles, mas também digo que, com tal histórico e dentro dessas fronteiras, a Rússia não tem como se tornar um país democrático. Em determinado momento, eu desejava o colapso da URSS, porque entendia que uma URSS democrática simplesmente não poderia existir. Mas eles ainda estão tentando construí-la lá.

Zisels está convencido de que o que está mudando é apenas o contexto geopolítico, mas não a identidade imperial da Rússia e que o Ocidente precisa compreender isso.

Para Mustafa Dzhemilev, a questão da derrota da Rússia é também a questão da possibilidade de finalmente voltar para casa, porque enquanto a Federação Russa existir na sua forma atual, a Crimeia permanece nas garras dos ocupantes. Marynovych tem uma visão semelhante:

In March 2022, I said ‘I sense the stench of a dying empire. Russia will not be able to swallow Ukraine — it will choke on it.’ I said that I am happy because I smell the cadaverous smell of the Russian Empire. And I still smell it. It will not swallow Ukraine; it will choke on it. I have no doubt about this, but the question is when and how? The same questions were raised about the Soviet Union when I was in the camps. Nobody knew when, but they knew that it would definitely collapse.

Em março de 2022, eu disse ‘sinto o fedor de um império moribundo. A Rússia não vai conseguir engolir a Ucrânia — vai engasgar-se com ela. Disse que estava feliz, porque sentia o cheiro cadavérico do império Russo. E ainda sinto o cheiro. Não vai engolir a Ucrânia, vai engasgar-se com ela. Não tenho dúvidas quanto a isso, mas a questão é quando e como? As mesmas perguntas foram feitas sobre a União Soviética quando eu estava nos campos. Ninguém sabia quando, mas tinham a certeza que entraria em colapso.

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