Casos de violências são cada vez mais frequentes nas escolas, o que assusta até mesmo àqueles que acompanham o noticiário sobre crimes na sociedade. Uma análise de dados nacionais feita pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Fapesp indica que a violência no ambiente escolar mais do que triplicou em 10 anos, atingindo o seu ápice em 2023.
Recentemente, o site G1 publicou uma reportagem que retrata bem a escalada de situações desse tipo, desta vez com professores como alvo. Sob o título ‘Vou matar ele logo’, um professor de 37 anos do Distrito Federal relata as ameaças de morte recebidas de alunos em um grupo de mensagens. “Segundo o professor, o caso aconteceu depois que ele repreendeu um estudante por sair da sala de aula sem autorização, no Centro de Ensino Médio 1 de São Sebastião, em abril deste ano”, informa a reportagem.
Cenas como essa ocorrem às centenas diariamente. Elas não surgem do nada – são um espelho da tensão social além dos muros da escola. Incontáveis escolas públicas estão inseridas em contextos de vulnerabilidade onde os conflitos costumam ser resolvidos com violência de todos os tipos, inclusive física. Em parte, isso também se perpetua pela falta de conhecimento sobre outras formas de enfrentamento dos conflitos.
O papel da escola na resolução de conflitos
Diante disso, como a sociedade está se posicionando? Por um lado, buscam-se modos “rápidos” e, aparentemente, eficientes para evitar e conter situações de violência. Nessa linha, uma das soluções apresentadas tem sido a conversão de escolas públicas em locais assemelhados aos quartéis. Inspiradas nos modelos de administração militar, e denominadas ‘cívico-militares’, essas escolas foram criadas em 2019 por um decreto federal. Embora esse decreto tenha sido revogado por outro em 2023, estados como São Paulo e Amazonas, entre outros, estão criando programas e escolas com esse perfil.
A tese defendida pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que propôs o modelo, e depois pelos governos estaduais que o adotaram, é de que, ao administrar escolas com o rigor hierárquico dos quartéis (instituições militares constituídas há milhares de anos para os períodos de guerra) e princípios fundamentados na ordem e na obediência, sem direito a questionamentos, seria possível resolver o problema da violência. Afinal, nesse contexto, “professores mandam, estudantes obedecem”. O fato de o Poder Executivo ser formado, à época do decreto de 2019, por um presidente e diversos ministros militares, emprestou contundência aos argumentos usados para defender essa proposta.
De acordo com as famílias que apoiam o formato cívico-militar de escola para seus filhos, é justificável não haver espaço para questionamentos, pois isso traria baderna e resultaria em violência. Com tal direção, os conflitos são silenciados, pois a ordem vem em primeiro lugar e está garantida pela obediência às regras impostas com grande rigidez.
De fato, sob a disciplina militar, os casos de conflitos tendem a diminuir significativamente, segundo dados de uma pesquisa do Ministério da Educação e Cultura feita em 2022. As informações desse levantamento indicam que a adoção desse modelo por algumas escolas levou a uma redução da violência física da ordem de 82%, redução da violência verbal em 75% e dos casos de violência patrimonial em 82%. O percentual de aprovação por parte da comunidade, na pesquisa do MEC, também foi elevado: 85% dos participantes se disseram satisfeitos com o ambiente escolar após a conversão para o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM).
Entretanto, os dados sobre contenção da violência e satisfação da comunidade com isso não podem ser vistos em separado no contexto da educação e formação de jovens. Essa avaliação precisa considerar, por exemplo, qual é o impacto da imposição da disciplina militar sobre a infância e adolescência em sociedades que pretendem consolidar relações democráticas, como a brasileira. Precisamos saber também como esse modelo repercute na aprendizagem e no entorno dessas escolas. Para se ter ideia, a mesma pesquisa do MEC de 2022 indicou que, nos arredores da escola, persistiu a resolução de conflitos com uso de vários tipos de violência.
Feitas estas considerações, é necessário abordar as fragilidades e equívocos contidos nessa proposta.
Quebra de contrato
O PECIM foi sistematizado e instituído em 5 de setembro de 2019 com a finalidade de implementar o modelo em escolas públicas de ensino regular com baixo resultado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb e que atendiam estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O objetivo descrito era reduzir a evasão, a repetência e o abandono escolar.
O primeiro problema desse projeto de ‘aquartelamento’ da violência escolar e dos baixos índices de qualidade da educação básica é a compreensão equivocada de que uma situação de tamanha complexidade e magnitude pode ser ‘silenciada’ por meio de práticas e regras rígidas de controle. A violência surge com a sociedade, é praticada por ela ao longo de sua história e exprime suas contradições e conflitos.
Reside aí o segundo equívoco: a rigor, apresentar os recursos para resolução de conflitos que os processos civilizatórios possibilitam é uma função social da escola contemporânea. É seu papel oferecer aos seus alunos a ‘preparação para o exercício da cidadania’.
Sob esse ponto de vista, a normatização militar das relações no ensino básico e fundamental representa a quebra dos contratos pedagógicos firmados pela escola com os alunos e suas famílias. Esse ‘contrato’ envolve o conjunto de expectativas, acordos e responsabilidades — explícitos ou implícitos — que orienta a relação entre professores e alunos ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Funciona como um pacto que estabelece papéis e responsabilidades, deveres e direitos, objetivos e critérios de avaliação e normas de convivência. Desde os filósofos iluministas (sobretudo Rousseau), entendeu-se quanto é fundamental que esse contrato seja cumprido para que a educação se dê.
No caso brasileiro, especificamente, a promulgação da Constituição Federal (1988) prevê, no Art. 205, que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Mais do que isso, no artigo seguinte, ao tratar dos princípios do ensino público, nos Incisos III e VI, respectivamente, a Constituição Federal, de 1988 cita a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas e aborda a gestão democrática do ensino público, na forma da lei. Aqui, outra vez, cabe destacar que a proposta de uma administração no ‘estilo militar’ não contempla qualquer forma de pluralidade de pensamento ou de exercício para uma gestão democrática. A máxima, neste caso, como já diziam nossos avós, é ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’.
Tampouco podemos, de forma alguma, negar o que estamos aprendendo ao longo da história recente, com as guerras em curso neste século XXI, sobre os desdobramentos que pode ter a ausência de pluralismo de ideias, de coexistência de culturas e de pressupostos democráticos.
Direção contrária
Por essa perspectiva, a inserção de um modo de gestão militar em contextos extremamente vulnerabilizados com o fim de manter a ordem e a disciplina pode trazer, na prática, a intolerância com a diversidade representada na escola. Além disso, sem que se dedique tempo para compreender e refletir sobre as causas das violências no ambiente escolar, as desigualdades tenderão a se aprofundar.
Nas palavras do educador, pedagogo e filósofo Paulo Freire, que completaria 100 anos e para quem a educação é um ato sobretudo de amor e de coragem, “quando a educação não é emancipatória, o sonho do oprimido é tornar-se um opressor” (Freire, 1987).
Se as escolas públicas deixam de lado sua missão civilizatória e democrática, deixam também de cumprir sua missão maior, de edificar uma cultura de paz. É nessa escola pública que se deveriam formar cidadãos capazes de exercer direitos e deveres com responsabilidade, tanto na vida em sociedade quanto no mercado de trabalho; e de afirmar plenamente sua condição de seres humanos.
No Brasil e mundo afora, não faltam relatos de pessoas em condições de vulnerabilidade que tiveram suas vidas transformadas pela educação pública de qualidade. Esses indivíduos, por sua vez, mudam suas famílias, seus bairros e municípios construindo uma sociedade de relações ‘civilizadas’ nas quais os conflitos se resolvem com o diálogo, e não com mais violência.
A reprodução de padrões militares nos contextos vulnerabilizados onde estão as escolas públicas vai, portanto, na direção contrária da finalidade da escola. Sob opressão, a violência é reproduzida e a sociedade não se transforma. Para tanto, são necessárias as práticas de uma gestão escolar dialogada e participativa, na qual se promova a educação pública de qualidade marcada pelos modos distintos e democráticos de enfrentamento dos conflitos e das desigualdades.