Entre os ecos da Doutrina Monroe e as novas disputas do século XXI, o mar reaparece como eixo das rotas comerciais e como arena decisiva da competição entre os Estados Unidos e a China no Caribe e na América Latina.
Introdução: o mar e a circulação global
O mar, historicamente, nunca foi apenas um espaço geográfico. Ele funciona como via de comércio, rota de transporte, palco de competição estratégica e, sobretudo, produtor de história.
No século XXI, essa dimensão tornou-se ainda mais crítica, à medida que a fluidez das rotas comerciais se torna um fator central da economia global e da segurança internacional. Hoje, os Estados Unidos e a China disputam não apenas mercados ou alianças políticas, mas também o controle, indireto e simbólico, das rotas marítimas mais estratégicas, inclusive, nas Américas.
O Canal do Panamá, os portos do Caribe e rotas próximas ao Atlântico Norte e Sul não são apenas pontos de trânsito de mercadorias: são nós críticos que conectam flutuações econômicas globais à presença militar.
Esse contexto permite analisar a atuação estadunidense sob a ótica de uma “Doutrina Donroe”, conceito aqui proposto para descrever a retomada de práticas estratégicas inspiradas na antiga Doutrina Monroe (1823), adaptadas às necessidades do século XXI e à crescente presença da China no hemisfério ocidental.
Do passado ao presente: a Doutrina Monroe e o poder marítimo
A Doutrina Monroe, proclamada pelo presidente James Monroe em 1823, estabeleceu que qualquer intervenção europeia nas Américas seria considerada uma ameaça à segurança dos Estados Unidos. Resumidamente, sua aplicação prática consolidou os Estados Unidos como árbitro regional, com a justificativa de proteger as novas repúblicas latino-estadunidenses.
No início do século XX, com a política do “Big Stick” de Theodore Roosevelt, essa abordagem passou a incorporar a supremacia naval. A aquisição de ilhas estratégicas — como Porto Rico e Guam — e a construção do Canal do Panamá permitiram unir as frotas do Atlântico e do Pacífico, consolidando o poder de projeção estadunidense.
O estrategista naval Alfred Thayer Mahan sustentava que a supremacia marítima constituía o elemento central para a projeção de poder em escala global, argumento que permanece relevante para interpretar as dinâmicas e os dispositivos estratégicos que moldam as operações navais na atualidade.
O Caribe como corredor estratégico
O Caribe voltou a ganhar destaque estratégico, não apenas pelo turismo e pelos recursos naturais, mas também como corredor vital das rotas comerciais. O Canal do Panamá conecta oceanos, encurta trajetos entre Ásia, Europa e América do Norte e movimenta milhões de toneladas de mercadorias anualmente — cerca de 6% do comércio marítimo global, segundo a Autoridade do Canal do Panamá (ACP).
A presença chinesa nos portos de Balboa (Pacífico) e Cristóbal (Atlântico), administrados pela Hutchison Ports de Hong Kong, gera inquietação em Washington, que percebe esses contratos de longa duração como uma potencial influência econômica e estratégica. Em discurso público, Trump chegou a mencionar a necessidade de “recuperar” o controle do canal, o que evidencia o uso da retórica histórica para legitimar projeções de poder.
A presença naval estadunidense no Caribe também se intensificou, com o envio do grupo de ataque do porta-aviões USS Gerald Ford (CVN-78). Essas operações, embora consistentes com exercícios regulares, ganham novo significado quando vistas sob o prisma da contenção chinesa e do reforço da fluidez das rotas comerciais estratégicas.
A China e a iniciativa da rota da seda nas Américas
A expansão chinesa na região não se limita ao comércio de bens. A Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative, BRI) envolve investimentos em portos, ferrovias e infraestrutura logística que podem servir tanto a objetivos comerciais quanto estratégicos. No Panamá, no Peru e no Brasil, a China reforça sua presença em áreas críticas para o fluxo global de mercadorias, criando uma rede de influência que desafia a tradicional supremacia estadunidense.
Para Washington, esses investimentos representam uma disputa indireta pelo controle de rotas marítimas essenciais. A retórica de “ameaça à segurança” visa consolidar uma narrativa que justifica a presença estadunidense, enquanto a prática envolve exercícios navais, acordos de cooperação regional e o monitoramento das rotas críticas.
A atuação chinesa nas Américas não é necessariamente agressiva, mas, do ponto de vista estratégico dos EUA, cria a necessidade de um mar seguro e fluido, em que a circulação de mercadorias não seja interrompida por interesses externos.
A “Doutrina Donroe” e a contenção marítima
Inspirada na Doutrina Monroe, a “Doutrina Donroe” mistura passado e presente: resgata o imaginário do século XIX e o combina com o nacionalismo assertivo que voltou a dominar Washington. Sob essa lógica, o mar reaparece como palco principal — não apenas como rota comercial, mas também como eixo de poder, segurança e prestígio. A narrativa oficial afirma três pilares: garantir a primazia marítima, conter a presença chinesa em portos estratégicos e recorrer a retórica beligerante como instrumento de política externa.
A reedição dessa doutrina rompe com a natureza defensiva do texto de 1823 e assume um tom ofensivo. Declarações sobre o Canal do Panamá, a Groenlândia e até o “Golfo da América” revelam ambições irredentistas travestidas de segurança hemisférica. O argumento — de que as rotas marítimas são vitais à soberania estadunidense — retoma o pensamento de Alfred Mahan, mas ignora a interdependência global e o direito internacional contemporâneo.
O episódio mais visível desse retorno foi a mobilização do grupo de ataque do porta-aviões USS Gerald Ford no Caribe. Oficialmente, a missão visava combater o tráfico de drogas. Na prática, a escala da operação e o foco no litoral venezuelano revelaram outro objetivo: a coerção política e militar sobre Caracas. O uso de poder naval para fins de pressão geopolítica revigora o Big Stick, agora em versão nuclear e multipolar.
A tensão interna veio à tona com a renúncia do almirante Alvin Holsey, que deixou o SOUTHCOM após discordâncias quanto à legalidade das operações navais, acusadas por peritos da ONU de resultarem em “execuções extrajudiciais”. A saída do comandante revelou o crescente desconforto entre os militares diante de uma política externa que usa o mar não como via de cooperação, mas como instrumento de coerção.
A Doutrina Donroe, portanto, simboliza a tentativa de reconstituir a centralidade marítima dos EUA sob a gramática de confronto. É o retorno da geopolítica clássica, travestida de política de segurança, em que o controle dos oceanos vale mais do que o consenso entre nações.
Fronteiras em fluxo: a Venezuela no tabuleiro do Caribe
Nenhuma leitura consistente sobre o Caribe contemporâneo pode ignorar a Venezuela — epicentro de uma crise política e econômica que transborda fronteiras e mares. Sob o regime de Nicolás Maduro, o país vive um colapso histórico: a hiperinflação destruiu a moeda, a produção de petróleo caiu para menos de 800 mil barris por dia, e mais de 7 milhões de venezuelanos foram forçados a migrar, segundo a ONU — o maior êxodo da história recente das Américas.
Mas o drama não é apenas terrestre. A geografia situa a Venezuela no coração das rotas marítimas do Caribe. Ilhas como Margarita, Los Roques e La Orchila constituem uma zona estratégica para o comércio, o contrabando e eventuais operações militares. Esse posicionamento desperta o interesse das grandes potências. A China investiu bilhões em empréstimos garantidos pelo petróleo, enquanto a Rússia manteve cooperação militar e exercícios conjuntos com Caracas.
Para Washington, a presença no Caribe é mais do que contenção chinesa: trata-se de garantir a fluidez das rotas marítimas e evitar que crises humanitárias ameacem o tráfego global. Países da CARICOM dividem-se entre apoiar as operações navais dos EUA e exigir transparência. O Brasil tenta preservar a autonomia e a tradição de não intervenção; o México equilibra o pragmatismo entre Washington e Pequim; e a Colômbia, aliada histórica, busca redefinir os termos dessa relação.
O mar, mais do que uma fronteira, tornou-se espelho da instabilidade venezuelana e barômetro das novas disputas globais pela circulação e pelo poder.
Conclusão: O mar é a fronteira do futuro
O retorno do mar ao centro da estratégia estadunidense evidencia que a fluidez das rotas comerciais é hoje tão importante quanto a presença militar. A “Doutrina Donroe” demonstra que os EUA continuam buscando influenciar o hemisfério ocidental, não apenas para conter a China, mas também para garantir que as rotas marítimas permaneçam abertas e seguras.
O Canal do Panamá e os portos do Caribe mostram que o poder naval funciona em conjunto com considerações econômicas e políticas. Operações militares e acordos de cooperação regional refletem o reconhecimento de que, sem controle indireto dessas rotas, a circulação global de mercadorias e, por consequência, a estabilidade econômica, estaria em risco.
O mar, portanto, permanece central: como via de comércio, arena de disputa e mecanismo de projeção de poder. No século XXI, a hegemonia não se mede apenas por território ou armamento, mas pela capacidade de garantir que os fluxos comerciais permaneçam ininterruptos, que rotas críticas estejam protegidas e que a competição entre grandes potências se dê dentro de limites que não comprometam a circulação global.





