O último domingo, 14 de dezembro, marcou o início da celebração de Chanucá, uma festividade judaica conhecida como a Festa das Luzes. Infelizmente, a data também foi atravessada pela violência. Durante uma celebração em Bondi Beach, em Sydney, na Austrália, judeus foram atacados, em um episódio que deixou 15 mortos (até o momento) e dezenas de feridos e que vem sendo tratado pelas autoridades como um ataque direcionado à comunidade judaica.
Esse ataque se insere em um contexto mais amplo de aumento da violência contra judeus em diversos lugares desde o final de 2023, quando a ofensiva de Israel na Palestina se intensificou de forma sem precedentes. Esse crescimento, no entanto, não se limita ao antissemitismo. No mesmo período, a islamofobia também aumentou de maneira alarmante em diferentes países, especialmente na Europa. Esses fenômenos revelam como o conflito entre Israel e Palestina não permanece restrito à região, mas se internacionaliza – e, com ele, se internacionalizam também diferentes formas de violência.
Como pesquisadora da transformação de conflitos e da atuação de movimentos não violentos em zonas de guerra, durante aulas e congressos sou frequentemente questionada sobre o que nós, enquanto comunidade internacional, podemos fazer para apoiar esses movimentos e suas ações. Costumo responder com algo que ouvi diretamente de uma ativista palestina que atua em um movimento não violento chamado Combatentes pela Paz, poucas semanas após o 7 de outubro de 2023: a primeira coisa que podemos fazer é nos desvincular do discurso violento, que, assim como o próprio conflito, tende a se internacionalizar.
Conflito não é embate simétrico
Diferentemente das grandes guerras internacionais do século XX, os conflitos armados contemporâneos costumam ocorrer em territórios mais limitados. Esse é exatamente o caso de Israel e Palestina. Ao utilizar a palavra “conflito”, é importante deixar claro que me refiro a um confronto de interesses, crenças, narrativas históricas e à perpetração de um ciclo de violência – e não a um embate simétrico entre dois lados com condições equivalentes de luta. Ainda assim, uma das principais características desses conflitos contemporâneos é a facilidade com que se internacionalizam.
Esse processo ocorre de diferentes maneiras. O conflito se internacionaliza, em primeiro lugar, por meio dos atores envolvidos na produção e no comércio da indústria bélica, que alimentam o confronto com armas. A internacionalização acontece também em função dos grandes deslocamentos de pessoas que fogem da violência em busca de refúgio em outros países. Envolve ainda atores engajados em debates diplomáticos e de mediação e, talvez de forma mais rápida e eficaz, ocorre por meio da mídia. Com a expansão dos canais de comunicação, imagens, notícias e discursos produzidos em um determinado local passam a circular globalmente em poucos minutos. Nesse movimento, internacionaliza-se também a violência cultural, que tende a legitimar e aprofundar a violência direta.
Johan Galtung, fundador dos Estudos para a Paz como área acadêmica, apontou que para pensarmos em paz, devemos pensar na ausência de violência. Para isso, é necessário enfrentar todas as formas de violência presentes na sociedade. O autor desenvolveu o que ficou conhecido como o “triângulo da violência”, composto por três dimensões interligadas: a violência direta, a estrutural e a cultural.
A violência direta é a mais visível, aquela que gera mortos, feridos, destruição e deslocamentos forçados. A violência estrutural acontece e se perpetua de forma menos evidente, por meio de normas, valores e estruturas sociais, e se manifesta, por exemplo, nas desigualdades. A violência cultural, por sua vez, sustenta e legitima as outras duas, por meio de recursos como linguagem, educação, mídia, crenças religiosas e ideologias.
O antissemitismo e a islamofobia se manifestam historicamente nessas três formas de violência em diferentes partes do mundo. O ciclo de violência entre Israel e Palestina, a ocupação militar israelense e a atuação de grupos armados palestinos produzem, há décadas, repercussões internacionais que aprofundam essas dinâmicas. Mas nos últimos dois anos esse processo tem se intensificado profundamente.
O risco da violência cultural
A condenação às práticas do Estado de Israel na Palestina, especialmente na Faixa de Gaza desde o final de 2023, tem gerado mobilizações ao redor do mundo, tanto por parte de governos quanto da sociedade civil, diante das graves violações de direitos humanos contra a população palestina, incluindo milhares de crianças.
Essas mobilizações são não apenas justificadas, mas necessárias para pressionar por mudanças efetivas. No entanto, elas se transformam em violência cultural quando passam a mobilizar vocabulários, imagens e narrativas moldadas por estereótipos e preconceitos históricos contra judeus. Culpar ou associar coletivamente judeus às ações do Estado de Israel, por exemplo, é uma das formas mais recorrentes dessa violência.
Processo semelhante ocorre em relação à prática da islamofobia. As imagens dos ataques de 7 de outubro de 2023, os sequestros de civis israelenses e os ataques subsequentes a civis em Israel por parte do Hamas geraram mobilizações internacionais em solidariedade às vítimas e às famílias afetadas – manifestações igualmente legítimas quando centradas na defesa dos direitos humanos. Ainda assim, em diversos contextos, essas mobilizações também deslizam para a violência cultural quando passam a associar muçulmanos, de forma generalizada, a grupos armados e práticas denominadas terroristas.
Além de resultar na perda irreparável de vidas, a internacionalização da violência cultural não contribui para reduzir a violência que ocorre nem na Palestina nem em Israel. Ao contrário, ela produz novas vítimas, reforça narrativas de ódio e aprofunda lógicas de inimizade. É profundamente simbólico que, durante o ataque em Bondi Beach, a pessoa que se mobilizou para desarmar um dos agressores, colocando a própria vida em risco, tenha sido um muçulmano, Ahmed al Ahmed, de 43 anos.
Internacionalizar as violências de um conflito não oferece respostas práticas a quem sofre diretamente com ele. A propagação de discursos violentos reforça violências culturais e estruturais e, aumenta, em última instância, a violência direta, agora em escala global. O assassinato de judeus em Bondi Beach neste último fim de semana, de Wadea al-Fayoume nos Estados Unidos em 2023 e de tantas outras pessoas não interrompeu a violência sofrida pelos palestinos, nem pelos israelenses. Mas perpetrou ódio, extremismos e narrativas dualistas.
Volto, então, à fala da ativista palestina que ouvi poucas semanas após o 7 de outubro de 2023. Apoiar o fim da violência exige que a sociedade internacional desengaje de discursos violentos. Quando esses discursos são reproduzidos, a mobilização internacional compromete sua capacidade de proteger civis e pressionar por mudanças concretas.
A atuação internacional em defesa dos direitos humanos e da paz não pode se sustentar na propagação de estereótipos, preconceitos históricos ou narrativas que desumanizam coletivos inteiros. Esse tipo de mobilização não protege quem sofre diretamente com a violência nem interrompe o conflito. Ao contrário, ele produz novas vítimas, desloca o foco das violações concretas e fragiliza justamente aqueles que mais precisam de atenção, solidariedade e ação internacional efetiva.





