A segurança dos medicamentos é um dos pilares da saúde pública. Na Argentina, essa responsabilidade cabe à Agencia Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica (ANMAT), encarregada de garantir a qualidade, a eficácia e a segurança dos produtos de saúde no país. O cumprimento de normas internacionais e de protocolos de fabricação transmite a ideia de que incidentes graves e mortes associadas a medicamentos são altamente improváveis.
No entanto, quando falhas ocorrem, comprometem o sistema de saúde, abalam sua credibilidade e expõem fragilidades regulatórias até então encobertas. Foi exatamente o que aconteceu recentemente com a contaminação de lotes de fentanil — um anestésico amplamente utilizado em procedimentos hospitalares.
No dia 2 de maio de 2025, o Hospital Italiano de La Plata notificou à ANMAT um surto de infecções graves em pacientes de terapia intensiva após a administração de fentanil. As análises identificaram a presença das bactérias Klebsiella pneumoniae e Ralstonia spp em amostras clínicas. Os mesmos patógenos foram posteriormente encontrados em ampolas do medicamento produzido pela farmacêutica argentina HLB Pharma.
Desse modo, um fármaco que deveria ser estéril transformou-se em veículo de infecção, desencadeando uma crise sanitária sem precedentes. Nas semanas seguintes, novos casos surgiram em diferentes instituições. Segundo o Boletim Epidemiológico Nacional publicado em 11 de agosto, já haviam sido confirmados 67 casos. Em 16 de agosto, o número de mortes registradas chegou a 96, e segue subindo.
Alertas e disposições sanitárias
As análises realizadas pelo Instituto Malbrán__ — laboratório público de referência em saúde e microbiologia da Argentina — levaram a ANMAT a emitir alertas nacionais e determinar a suspensão imediata do uso do fentanil produzido pela HLB. A medida foi formalizada por meio da Disposición 3156/25, que proibiu a comercialização e a distribuição do medicamento em todo o território nacional.
A HLB Pharma não era uma empresa periférica no sistema de saúde argentino. Com sede em San Isidro e uma planta em Ramallo, ambos na província de Buenos Aires, produzia medicamentos injetáveis destinados a hospitais públicos e privados. A companhia pertence a Ariel García Furfaro, empresário que, em 2004, expandiu seus negócios ao adquirir a planta argentina da multinacional Aventis, formada em 1999 pela fusão da alemã Hoechst com a francesa Rhône-Poulenc. Desde então, laboratórios de capital argentino passaram a dominar a indústria farmacêutica nacional, que hoje concentra mais de 70% da produção local.
Mas o histórico da HBL Pharma já era preocupante. Desde 2022, a ANMAT vinha registrando falhas recorrentes em inspeções: problemas de esterilidade, rastreabilidade deficiente e embalagens irregulares. Essas irregularidades geraram advertências e medidas pontuais, mas nunca uma sanção estrutural.
Nos anos seguintes, a agência publicou disposições cada vez mais sérias, que mostram como o problema foi se acumulando:
27 de abril de 2022 – Após detectar falhas de qualidade, a agência reguladora ordena a retirada de lotes de solução fisiológica de cloreto de sódio e de solução de dextrose 5%.
10 de fevereiro de 2025 – Uma inspeção da ANMAT no Laboratório Ramallo (28/11 a 12/12/2024) detectou falhas críticas e maiores em qualidade, produção, recursos humanos, depósitos e controle. As irregularidades comprometem a segurança e a eficácia dos produtos.
16 de abril de 2025 – A ANMAT identificou irregularidades nos produtos da HLB Pharma, incluindo lotes de Propofol HLB sem etiqueta de rastreabilidade. Como medida, foi proibido o uso, comercialização e distribuição desses lotes em todo o país e determinado o recolhimento do mercado.
[24 de abril de 2025](https://www.argentina.gob.ar/noticias/se-prohibe-el-uso-comercializacion-y-distribucion-de-los-productos-diclofenac-hlb) – A agência ANMAT proibiu a distribuição de diclofenaco e morfina fabricados pela HLB e ordenou seu recolhimento imediato.
13 de maio de 2025 – Com o surto já em curso, a ANMAT publicou a Disposición 3156/25, proibindo o uso do fentanil HLB em todo o país e, no mesmo dia, pela Disposición 3158/25, suspendendo todas as atividades produtivas da empresa e interditando suas plantas.
Essas disposições revelam a “janela de tempo” crítica. Entre 2022 e 2025, a agência acumulou alertas e proibições parciais, mas só após dezenas de mortes decidiu interditar a empresa. O “círculo vicioso” de relatórios, advertências e recolhimentos de lotes específicos permitiu que a HLB continuasse operando até que a tragédia tornou a sua paralisação inevitável.
O que emerge daí é uma pergunta inevitável: por que a ANMAT não atuou de forma mais contundente antes? Os controles existiam e os problemas eram visíveis, mas a empresa seguia funcionando. Isso não se explica apenas por falhas de execução. Revela também um problema político, em que a agência, submetida a pressões e limitada por seu desenho institucional, não teve força para paralisar um ator já consolidado no setor.
O descompasso entre indústria e fiscalização
O caso também precisa ser entendido em um contexto mais amplo. De acordo com um informe da Câmara Industrial de Laboratórios Farmacêuticos Argentinos (CILFA), a Argentina possui a maior indústria farmacêutica de capital nacional da América Latina. Em 2022, laboratórios nacionais representavam 78% da produção, frente a 22% das multinacionais. Esse predomínio contrasta com países como o Brasil, onde a presença de empresas nacionais e multinacionais é praticamente equilibrada (49% e 51%, respectivamente).
O fortalecimento da indústria argentina reflete um processo iniciado nos anos 2000, quando companhias locais adquiriram plantas e ativos de multinacionais em retração. O país construiu uma das maiores indústrias farmacêuticas nacionais da América Latina, com mais de 300 laboratórios, celebrada como sinal de autonomia produtiva e soberania sanitária. Essa estrutura foi capaz de atender o mercado interno e ampliar a presença internacional do país. Mas a tragédia de 2025 revelou o outro lado dessa equação: a força dos capitais nacionais não foi acompanhada por mecanismos de controle suficientemente robustos. Empresas centrais do sistema de saúde acumularam advertências durante anos sem sofrer sanções proporcionais, o que ajudou a levar ao desfecho trágico.
Embora não seja a maior crise sanitária da história argentina em números absolutos — a pandemia de COVID-19 resultou em mais de 130 mil mortes —, trata-se da mais grave tragédia recente diretamente ligada à produção farmacêutica. Nunca antes tantas mortes haviam sido associadas a um medicamento fabricado no país sob autorização estatal. O caso HLB não deve ser compreendido apenas como falha de um laboratório específico, mas como expressão de uma contradição estrutural: uma indústria nacional robusta e uma agência reguladora respeitada, mas sem instrumentos de fiscalização fortalecidos na mesma medida.
A ANMAT é frequentemente apontada como uma das agências mais sólidas da América Latina e está entre as três integrantes regionais do Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano (ICH). As outras são a ANVISA (Brasil) e z COFEPRIS (link text (México). POrém, mostrou-se limitada diante de pressões políticas e econômicas. A sequência de inspeções, advertências e disposições entre 2022 e 2025 evidencia que os mecanismos de controle existiam, mas a resposta institucional não foi suficientemente firme para deter um ator central do setor. O resultado é conhecido.
Lições para o enfrentamento da resistência antimicrobiana
O episódio também expôs a face mais grave da resistência antimicrobiana (RAM), um dos maiores desafios globais à saúde pública. A contaminação do fentanil por bactérias multirresistentes — como a Klebsiella pneumoniae, capaz de inativar medicamentos carbapenêmicos, antibióticos de última linha — mostrou que falhas de produção, fiscalização e resposta aceleram a disseminação de microrganismos que causam infecções quase impossíveis de tratar. A elevada letalidade do surto na Argentina revelou que a resistência antimicrobiana (RAM) não é uma ameaça abstrata, mas um risco concreto quando a vigilância sanitária não cumpre seu papel.
As críticas dirigidas à ANMAT refletem essa percepção. A agência é acusada de ineficiência tanto na prevenção — diante de problemas já conhecidos na farmacêutica — quanto na resposta, considerada tardia. O fato de a contaminação ter sido inicialmente detectada em um hospital e depois confirmada pelo Instituto Malbrán aponta a importância da vigilância clínica e laboratorial, mas também a insuficiência da reação regulatória.
Assim, o caso HLB deixa uma lição dupla. Para preservar a confiança nos medicamentos, não basta ter capacidade produtiva nem tradição institucional. É indispensável assegurar que as agências reguladoras tenham recursos, autonomia e respaldo político para aplicar medidas duras contra empresas centrais. Diante da ameaça crescente da resistência antimicrobiana, fortalecer esses mecanismos é fundamental para evitar novas crises.