Em seu discurso de posse no último dia 20 de janeiro, Donald Trump repudiou as políticas de ação afirmativa implementadas pelos governos democratas, especificamente as voltadas para raça e gênero. Usando a expressão “engenharia social” para descredibilizá-las, defendeu a suspensão de todas elas. Não foi original. Já em 1962, o republicano Barry Goldwater, que viria a ser candidato nas eleições presidenciais de 1964, acusava os democratas de realizarem “engenharia social” através de seus programas de bem-estar social.
A crítica à “engenharia social”, elemento do repertório discursivo do conservadorismo norte-americano, parte do pressuposto de que políticas de ação afirmativa impedem a distribuição de remunerações e de poder pelo critério do chamado mérito individual, corrompendo relações sociais que de outra forma seriam “naturais”. O resultado não poderia ser outro que a deterioração da situação geral, para lembrar “A retórica da intransigência”, de Albert Hirschman.
O que a retórica do atual presidente ignora é que leis e políticas públicas que distribuem remunerações, poderes e direitos de formas distintas não foram inventadas recentemente. Nasceram no grande acordo que deu forma à Constituição dos Estados Unidos, em 1787, e se tornaram possíveis graças ao federalismo (https://www.jota.info/artigos/federalismo-eua-competencias-estados), uma das principais inovações do texto constitucional norte-americano.
Ao distribuir o poder entre União e estados, o federalismo permitiu, pelo menos até a Guerra Civil de 1861-1865, a convivência entre estados escravistas e não-escravistas nos EUA. Com a derrota dos escravistas, os Confederados, a balança do poder entre estados e União pendeu para o lado vitorioso, o que tornou possível a aprovação das chamadas Emendas da Reconstrução – período em que o Norte ocupou o Sul e buscou incorporar os ex-escravizados ao mundo dos direitos.
Nesse esforço, surgiram a 13ª Emenda, de 1865, que aboliu a escravidão em todo o território norte-americano. Depois a 14ª, de 1867, que assegurou cidadania a todos os nascidos nos Estados Unidos, e garantiu a todos o direito ao devido processo legal. Já a 15ª, de 1870, proibiu interdições ao voto em razão de raça, cor ou condição prévia de cativeiro.
Federalismo, reação segregacionista e “sociedades de anjos”
Os estados do Sul reagiram violentamente à Reconstrução e conseguiram, em 1877, colocar-lhe um ponto final. A partir de então, acionaram os recursos do federalismo de que ainda dispunham para negar aos ex-escravizados e seus descendentes direitos civis e participação na vida política.
A partir da década de 1890, diversas casas legislativas do Sul criaram leis de segregação de afroamericanos. Algumas duraram mais de 70 anos, e só foram totalmente abolidas em 1967, por decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Entre 1890 e 1908, estes mesmos estados segregacionistas impediram o direito de voto dos afroamericanos. Para isso recorreram a expedientes não previstos na 15ª emenda, como testes de alfabetização e cobrança de impostos. Essa interdição só foi completamente suspensa com a Lei do Direito de Voto, assinada mais de 50 anos depois, em 1965.
Além de viabilizar a escravidão em âmbito estadual, o federalismo também foi parte do remédio proposto por James Madison, o arquiteto da Constituição norte-americana, ao que ele entendia ser “a dimensão negativa da natureza humana”.
Na inexistência de anjos, afirmou ele em “O Federalista no. 51”, tornava-se necessária a construção de um Estado baseado em um sistema de freios e contrapesos em que todos os agentes públicos se vigiassem mutuamente e fossem, por sua vez, vigiados pelos eleitores. Assim, o poder estatal foi horizontalmente dividido no nível da União (Executivo, Legislativo e Judiciário) e verticalmente entre União e estados (federalismo).
O que Madison não previu é que, com base na tradição evangélica norte-americana, diversos estados aprovariam leis com vistas à construção de “sociedades de anjos”. Para defender a família patriarcal, sujeitaram esposas aos maridos e interditaram o voto feminino. Somente com a 19ª Emenda, de 1920, mulheres tiveram direito de voto. A Emenda dos Direitos Iguais, proposta no Congresso em 1923, assegurando às mulheres plenos direitos em matéria de divórcio, propriedade e emprego, contudo, jamais foi ratificada. Apenas em 1964 a igualdade no trabalho foi a elas assegurada por legislação federal.
Entre 1880 e 1920, dezenas de estados criminalizaram a bebida, o jogo, a prostituição e as relações homossexuais. Estas só deixaram de ser crime no Texas em 2003, graças a uma decisão da Suprema Corte. Já a prostituição continua sendo ilegal em quase todos os estados. Finalmente, apenas em 2015 o direito civil ao casamento entre duas pessoas do mesmo sexo foi assegurado no país.
Escravidão e segregação, interdição ao voto feminino e afroamericano, sujeição da mulher ao marido e restrição dos direitos civis de mulheres e homossexuais, proibição do jogo, da bebida e da prostituição… Desde fins do século XVIII, a força do estado foi usada para distribuir desigualmente poder político, remunerações e direitos civis, assim como para interditar escolhas e hábitos privados com o objetivo de tornar os seres humanos “mais perfeitos”. Em outras palavras, são, todos esses, casos de “engenharia social”, para utilizar o vocabulário político conservador.
A União também fez “engenharia social”
A partir da Grande Depressão de 1929, a distribuição de poder entre estados e União pendeu novamente para a União, e o governo federal também começou a realizar a sua “engenharia social”.
A Seguridade Social do New Deal, de 1935, excluía trabalhadores rurais e domésticos, então o coração do trabalho afroamericano no Sul. No pós-Segunda Guerra, a Lei de Ajuda Federal à Auto-Estrada, a Administração Federal de Habitação, a Lei dos Veteranos de Guerra e os investimentos federais nos complexos industrial-militar e aeroespacial beneficiaram classes médias brancas com empregos de alta remuneração, casas suburbanas, educação básica de qualidade e financiamento ao ensino superior. Afroamericanos, por seu lado, continuaram tendo escolas públicas de pior qualidade, políticas habitacionais esparsas e difícil acesso ao ensino superior.
Não à toa, em 1966, 40% dos não-brancos estavam abaixo da linha de pobreza nos EUA, contra 11,9% dos brancos. A Comissão Kerner, criada pelo presidente Lyndon Johnson para investigar a violência racial do Longo Verão Quente, de 1967, afirmou, com surpreendente honestidade: “O que os americanos brancos nunca entenderam completamente – mas o negro não pode esquecer – é que a sociedade branca está profundamente envolvida no gueto. As instituições brancas o criaram, as instituições brancas o mantêm e a sociedade branca o tolera”.
O que, afinal, buscam as políticas de ação afirmativa?
Para conservadores abrigados no Partido Republicano, a desigualdade entre os indivíduos resulta da natural distribuição dos méritos individuais. O que chamam de “engenharia social” só poderia resultar, portanto, na criação de grupos sociais privilegiados, em detrimento do conjunto da sociedade.
O sentido das ações afirmativas, no entanto, é outro.
À parte políticas públicas mal desenhadas, que sempre existem, ações afirmativas não buscam favorecer mulheres, afroamericanos, gays ou transgêneros em detrimento do mérito individual. Apenas buscam atenuar os impactos negativos – econômicos, políticos, educacionais, profissionais, emocionais – de leis e políticas públicas que, deliberadamente, por vezes ao longo de séculos, subalternizaram grupos sociais inteiros. Portanto, a ideia é que sejam provisórias, atuando enquanto perdurar a desigualdade politicamente produzida.
Embora um presidente republicano e conservador,Richard Nixon, tenha feito ações afirmativas na década de 1970, tais políticas são associadas ao credo central do liberalismo norte-americano, abraçado pelo Partido Democrata: uma vez garantidos direitos iguais a todos – não apenas na letra da lei, mas efetivamente no mercado e na vida privada -, cada um que busque a sua felicidade, de acordo com seus desejos e competências.