Temendo uma operação militar dos EUA para derrubar o governo, o presidente venezuelano Nicolás Maduro ordenou a mobilização de civis e militares para a defesa nacional. Como era de se esperar, os canais oficiais do governo bolivariano entraram em efervescência logo após os primeiros ataques dos EUA a barcos venezuelanos no Caribe. Contudo, chama atenção o conteúdo das mensagens veiculadas nos últimos dias sobre defesa nacional.
Em um dos vídeos, civis à paisana recebem treinamento em sistemas de armamentos antitanques caso tenham de “neutralizar sistemas de blindados”, explica um oficial da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB). Nas últimas semanas, uma cascata de matérias jornalísticas deu conta da distribuição de armas a civis comprometidos a defender a Venezuela de uma “guerra não declarada” por parte de Washington.
Estas mensagens distam de um cenário de guerra convencional, evocando formas de resistência arraigada no apoio da população civil – uma doutrina de defesa territorial desenvolvida ao longo dos últimos 20 anos que poderia estar a ponto de ser testada pela primeira vez.
Anunciando a ativação das chamadas “Unidades Comunais” da Milícia Bolivariana, em 5/9, o presidente Nicolás Maduro ressaltou a influência de duas obras que “alimentaram nossa doutrina militar” – ambas, ensinamentos sobre os fundamentos da guerra assimétrica do ex-líder revolucionário e presidente do Vietnam, Ho Chi Minh, e do general vietcongue, Vo Nguyen Giap. “Hoje estamos dando um passo transcendental, um passo para que toda Venezuela (…) se articule na defesa do direito à paz, em defesa da Venezuela, em defesa da integridade territorial, das riquezas naturais”, disse Maduro. “E para isso temos que nos unir, como dizia Ho Chi Minh, unir a todos contra o inimigo principal.”
Guerra assimétrica, popular e prolongada
A atual doutrina militar venezuelana tem origens no cenário pós-golpe de 2002, quando o governo George W. Bush e os militares americanos classificavam Chávez como uma das maiores “ameaças aos interesses americanos” no hemisfério. Compreendendo que as maiores ameaças à integridade venezuelana eram um conflito assimétrico com os Estados Unidos ou um enfrentamento convencional com a Colômbia – à época aliada de Washington –, Chávez empreendeu uma transformação das forças armadas venezuelanas. Isto incluiu a expansão, modernização e armamento das capacidades defensivas para fazer frente às ameaças tradicionais, além de uma série de inovações baseadas em preceitos de guerra popular para fazer frente às ameaças assimétricas.
A “guerra popular e prolongada” é uma estratégia maoista, amplamente teorizada e aplicada pelos revolucionários vietnamitas, cujo princípio da assimetria e da irregularidade das formações determinam as estratégias do campo de batalha. Para citar uma das adaptações, enquanto a guerra tradicional envolve o controle de posições, a guerra assimétrica aceita a perda de território em um primeiro momento a fim de armar a resistência e engajar o inimigo em uma guerra de desgaste a longo prazo. O objetivo não é vencer de um golpe só, mas tornar a guerra insustentável para o inimigo, a exemplo dos conflitos no Iraque e no Vietnã.
Para tanto, essa estratégia borra as fronteiras entre campo de batalha e sociedade, entre soldado e cidadão. “A guerra mais vigorosa pode ser travada com pouco dinheiro, mas somente com muita coragem e boa vontade”, escreveu o célebre teórico militar prussiano Carl von Clausewitz sobre as chamadas “guerras pequenas” (kleinkrieg) e a “guerra do povo” (volkskrieg). “Lutar pela pátria” é a maior motivação para o soldado, afirmou Clausewitz, cujas reflexões sobre esta modalidade de conflito são menos conhecidas que seu grande tratado sobre as “guerras grandes”.
Na América Latina, as guerrilhas marxistas que brotaram no pós-Segunda Guerra sofreram alguma influência dessa concepção, embora grande parte tenha também sido influenciada pelo “foquismo” de Che Guevara, que entendia ser possível fazer a revolução apenas a partir de uma vanguarda revolucionária como a que desceu da Sierra Maestra em janeiro de 1959 e derrocou o governo de Fulgencio Batista. Na Cuba moderna, porém, a assimetria da ameaça norte-americana – assim como o sucesso das estratégias de guerra assimétrica no século XX, do Vietnã ao Afeganistão sob ocupação soviética – explicam por que ela se tornou um pilar da doutrina militar cubana.
‘Guerra popular prolongada’
Na Venezuela, o conceito foi articulado a partir de 2004 através do chamado “Novo Pensamento Militar”, sob o fantasma da invasão do Iraque em 2003. Não por acaso uma das influências sobre o pensamento militar venezuelano à época foi o cientista político espanhol Jorge Verstrynge, cujo livro sobre Islã e guerra periférica foi distribuído a dezenas de milhares de oficiais venezuelanos.
O sociólogo alemão Heinz Dieterich definiu a doutrina venezuelana como “um filho sui generis da mesma parteira da história que engendrou as teorias militares da ‘guerra popular prolongada’ de Mao Tse Tung e Ho Chi Minh/Vo Nguyen Giap na Ásia, e da ‘guerra de todo o povo’ em Cuba”.
A Milícia Bolivariana, criada oficialmente em 2008 a partir da expansão das forças de reserva militar nos anos anteriores, é, em tese, a encarnação dessa doutrina. A Milícia incorpora a população civil em tarefas de mobilização revolucionária e defesa nacional, valendo-se de um princípio contido na Constituição de 1999 sobre a “corresponsabilidade” de civis e militares pela defesa nacional.
De 1,6 milhão de membros em 2018, segundo números oficiais, passou a 5 milhões em 2024. Em agosto de 2025, o governo anunciou que a meta é mobilizar um total de 8,5 milhões de cidadãos, embora o número de tropas com apresto para combate fique provavelmente nas dezenas de milhares.
Mas o objetivo desta força não é duplicar o poder convencional das Forças Armadas, e sim oferecer capilaridade ao sistema de defesa territorial, aproveitando o conhecimento geográfico detalhado das comunidades para reforçar a resistência a nível hiperlocal. Na eventualidade de um conflito, é provável que uma grande parte dos milicianos e milicianas, em vez de pegar em armas, se dedicasse ao que o governo chama de “inteligência popular” – principalmente os alistados mais velhos.
Nesse contexto, é preciso interpretar as imagens que circulam de milicianos e milicianas da terceira idade manuseando fuzis de forma desajeitada não como uma ilustração do poder militar da FANB, e sim como um recurso comunicacional para projetar a noção de “guerrade todo el pueblo” – a guerra em que participa toda a sociedade. Como me contou um oficial venezuelano durante minha visita a Caracas em 2024, todo miliciano e miliciana possui um MAL: missão, arma e local. Pode ser que a arma dos velhinhos e velhinhas das fotos “não seja o fuzil”, esclareceu o oficial. “Talvez seja inteligência.”
Incertezas
Existem, é claro, enormes incertezas sobre um cenário de conflito EUA-Venezuela, porque vários fatores carecem de definição em ambos os lados. Do lado venezuelano, a coordenação civil-militar em um cenário de conflito é uma tarefa extremamente complexa.
Exercícios militares como o Escudo Bolivariano, que mobiliza centenas de milhares de tropas das forças convencionais, da Milícia Bolivariana e efetivos policiais, simulam ações prováveis, como incursão estrangeira, sabotagem e emergências, mas esta logística nunca foi testada na prática.
Outra incerteza é sobre a coesão dos combatentes em um cenário de conflito. Fatores como grau de profissionalização, compromisso ideológico, patriotismo, disciplina e organização são decisivos. Cada um determina, à sua maneira, o comportamento das tropas no campo de batalha.
Pode o comprometimento ideológico dos milicianos compensar as suas carências em profissionalismo? Estariam os oficiais subalternos das tropas profissionais dispostos a defender um governo acusado de subverter um resultado eleitoral legítimo? Abrir-se-ia um risco de golpe?
Do lado americano, não existe clareza sobre qual seria o plano de Trump para a Venezuela. Assumindo que o objetivo de Washington é instalar um governo Edmundo González ou Maria Corina Machado no Palácio de Miraflores, como garantir a sobrevivência e a viabilidade de tal governo nos dias, semanas e meses subsequentes à tomada de poder? Como garantir que não haveria contragolpe ou golpe dentro do golpe?
É difícil imaginar um cenário de conflito que não envolva uma boa dose de caos e possivelmente uma nova crise de refugiados venezuelanos no continente. É bom lembrar que Trump foi responsável por encerrar a presença americana no Afeganistão em 2021. A lógica da doutrina bolivariana é que as perspectivas de abrir um novo Iraque na América Latina sirvam como dissuasão para evitar um ataque.