A cada 10 segundos, alguém é picado por uma cobra no mundo. Estima-se que 1,8 a 2,7 milhões de pessoas sejam envenenadas por serpentes a cada ano. Calcula-se entre 81 e 138 mil mortes anuais e cerca de 400 mil sobreviventes que sofrem consequências de incapacidades duradouras como a perda de membros ou limitações motoras. Apesar desses números elevados, o tema recebe pouca atenção política e científica.
De acordo com a OMS, o envenenamento por picada de cobra representa um importante problema de saúde pública, principalmente em países tropicais e subtropicais em desenvolvimento.
Esses acidentes ofídicos são considerados como doença tropical negligenciada porque reúnem um conjunto de características que os colocam entre os problemas mais graves e, ao mesmo tempo, mais ignorados.
Com maior frequência, acontecem entre os trabalhadores agrícolas, seringueiros, pescadores; comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas; pessoas que vivem longe de serviços de saúde.
Segunda causa de envenenamento
No Brasil, um país extremamente diverso e de dimensões continentais, o envenenamento por picada de cobra é a segunda principal causa de envenenamento por animais peçonhentos notificados em humanoss.
O grande desafio é tratar os acidentes ofídicos. Apesar do acesso à terapia com soro antiofídico e da distribuição gratuita pelo SUS em todo o país, ainda enfrentamos diversos problemas relacionados ao envio e armazenamento adequado do soro para populações em risco. Outro desafio é preparar os profissionais de saúde para o manejo adequado do tratamento de acidentados com esses animais.
Segundo levantamento, baseado em notificações oficiais brasileiras, entre 2012 e 2021, foram registrados 202.604 casos de envenenamento por serpentes do gênero Bothrops, o que equivale, em média, a cerca de 20.260 casos por ano. Os acidentes botrópico (Bothrops e Bothrocophias) podem ser provocados por jararaca, jararacuçu, urutu, caiçaca, comboia, cruzeira, cotiara, entre vários outros.
O botrópico é o grupo mais importante, com cerca de 30 espécies em todo o território brasileiro. Este grupo é encontrado em ambientes diversos, desde beiras de rios e igarapés, áreas litorâneas e úmidas, agrícolas e periurbanas, cerrados e áreas abertas.
Os sintomas na região da picada são dor e inchaço. Às vezes, aparecem manchas arroxeadas (edemas e equimose) e sangramento pelos pontos da picada, em gengivas, pele e urina. Pode haver ainda complicações, como grave hemorragia em regiões vitais, infecção e necrose na região da picada, além de insuficiência renal.
Soros que salvam
O soro antiofídico é o único tratamento reconhecido e específico para acidentes ofídicos. Não há dúvida de que a escassez de soros antiofídicos eficazes e adequados para uso regional continua sendo um problema de saúde pública em todo o mundo. Países africanos e asiáticos, onde as picadas de cobra ainda causam morte ou morbidade, essas questões são negligenciadas por governos e produtores de antiveneno.
Desde 2012, a OMS tem publicado documentos sobre esse tema. Seu comitê de especialistas em Padronização Biológica (ECBS) reconheceu que, para lidar melhor com essa crise, alguns desafios precisariam ser superados adequadamente para garantir a qualidade, a segurança e a eficácia dos soros antiofídicos. Nesse sentido, é importante focar em uma produção de antivenenos específicos e de baixo custo.
Um aspecto relevante e pouco discutido na comunidade científica é o custo efetivo do uso de animais de grande porte para produzir soros antiofídicos. Os equinos são os animais preferidos para a obtenção de plasma hiperimune. Seu grande porte permite a retirada de grandes volumes de plasma. Portanto, qualquer perda desses animais é economicamente e clinicamente significativa.
Embora a OMS recomende a oferta necessária de cuidados clínicos veterinários individuais e suporte adequado para promover o bem-estar, complicações como o desenvolvimento de úlceras, abscessos, necrose local e hemorragias – que limitam a condição física do animal ou levam à sua morte – são monitoradas ao longo de todo o processo de imunização.
Além disso, a janela de utilização do animal é relativamente curta devido à toxicidade do veneno. Como resultado, estudos têm sido realizados para obter antígenos com baixa toxicidade e maior resposta imune, uma vez que algumas serpentes têm venenos com baixa capacidade imunogênica, mas alta toxicidade.
Alternativas
Em busca de alternativas para fabricação de soros antiofídico, nosso grupo do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Biologia Estrutural e Bioimagem (INCT/CNPq), do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e do Instituto Vital Brazil publicou recentemente um estudo, no periódico Toxins, em que descrevemos nossas experiências com a alta pressão hidrostática (APH) para o desenvolvimento de soros.
A APH consiste em submeter líquidos, soluções, proteínas isoladas, extratos ou mesmo células, como bactérias, e vírus, a pressões muito mais elevadas do que as do fundo do mar com a finalidade de modificar a estrutura das moléculas, das células ou dos vírus.
Em nosso estudo, usamos a APH para inativar o veneno de Bothrops jararacussu. O nosso protocolo promoveu a perda ou a redução de diversas atividades biológicas do veneno.
Cavalos foram imunizados com o veneno pressurizado. Vale ressaltar que, em contraste com o veneno nativo, esse procedimento não induz qualquer dano aos animais.
Além disso, o soro obtido a partir do veneno pressurizado neutralizou de forma eficiente todas as atividades biológicas do veneno de B. jararacussu.
Os resultados mostraram que as titulações de anticorpos foram mais altas no soro produzido com o veneno pressurizado, quando comparadas às do soro produzido com o veneno nativo.
E mais: esse antiveneno foi eficaz não apenas contra o veneno de B. jararacussu, mas também contra o veneno de outras espécies e gêneros.
Cabe ainda destacar que esse método está associado à redução dos efeitos tóxicos nos animais imunizados e a uma maior potência.
Como conclusão, podemos afirmar que nossos dados mostraram uma nova técnica promissora para produzir soro hiperimune utilizando veneno inativado por alta pressão hidrostática.
Alta pressão hidrostáticas em vacinas
A APH tem sido utilizada para inativação viral a fim de facilitar o desenvolvimento de vacinas, especialmente quando a imunogenicidade é mantida ou até aumentada.
E esse uso tem mostrado grande potencial. Em 2008, em um estudo utilizaram a alta pressão hidrostática para a inativação viral e desenvolvimento de vacina de febre amarela. O tratamento aboliu a infectividade do vírus causador da doença em camundongos. Além disso, os animais apresentaram proteção completa contra o desafio letal do vírus.
Carlos Dumard e outros cientistas utilizaram o vírus da influenza aviária H3N8 inativado por alta pressão hidrostática e os resultados foram impressionantes.
O estudo mostrou que os animais imunizados ficaram completamente protegidos contra o desafio de infecção pelo vírus nativo.
Apesar do potencial da alta pressão hidrostática para a produção de vacinas e de seu uso em diversos estudos com diferentes tipos de proteínas, até agora poucos artigos tinham descrito o seu efeito sobre toxinas purificadas de animais peçonhentos, geralmente em estudos estruturais.
Esperamos que nossos resultados impulsionem outros grupos de pesquisa mundiais a converterem a negligência histórica dos acidentes ofídicos em estratégias sólidas de controle
Este artigo foi produzido com apoio das agências de fomento Faperj, Capes e CNPq.
