
Já é de conhecimento de todos que a COP 30 em Belém tem como temas fundamentais os desafios da crise climática que incide sobre o planeta e também as estratégias para o seu enfrentamento. Neste contexto, a conservação do bioma amazônico se destaca como estratégica para a regulação do clima global. Mas nós, cientistas e pesquisadores amazônidas, entendemos a importância desse bioma não somente por suas florestas, mas principalmente pelas múltiplas vozes que este território abriga.
São vozes de alerta que povos amazônicos e cientistas da região vêm ressoando há tempos. Agora, elas se tornam urgentes de serem ouvidas e levadas à sério.
N. da R.: Não foi por acaso que, na noite de terça-feira, dia 11 de novembro, um grupo de indígenas que fazia uma manifestação tentou forçar a entrada num dos pavilhões da COP, gerando confusão e atrito com a polícia. O que eles queriam? Ter as suas vozes ouvidas.
À luz desses acontecimentos que são apenas o reflexo de um desequilíbrio de representatividade social da Amazônia que a COP 30 torna mais evidente, este texto tem o propósito de apresentar uma pesquisa que busca unir conhecimentos indígenas e acadêmicos para investigar as origens da diversidade biocultural da Amazônia.
A hipótese é que Terras Indígenas com histórias humanas profundas e pouco impactadas pelos padrões capitalistas de uso da terra são refúgios globalmente críticos para uma enorme biodiversidade ainda pouco conhecida pela ciência ocidental. Os conhecimentos indígenas estão profundamente conectados com essa biodiversidade, e são legados milenares de manejo e domesticação de paisagem que respondem às necessidades humanas sem interromper os processos ecológicos essenciais. Portanto, a colaboração simétrica com os povos indígenas é crítica para estratégias de manejo e conservação da biodiversidade e devem ser salvaguardados, divulgados e compartilhados para promover a continuidade de práticas sustentáveis.
Vozes da Amazônia Indígena é uma pesquisa que aborda essa biodiversidade amazônica a partir das múltiplas interações entre seres (humanos e não humanos) ao longo do tempo.
A pesquisa atua em colaboração com povos indígenas em três territórios ecologicamente distintos:
- O Alto Rio Negro no Noroeste Amazônico (Amazonas)
- O Alto Xingu, na Amazônia Meridional (Mato Grosso)
- O corredor ecológico do Xingu, na Terra Indígena Kayapó (Pará)
Estas regiões em estudo compartilham elevadíssima biodiversidade e histórias complexas de ocupação indígena, desde tempos pré- coloniais até o presente.

Elas vêm sendo abordadas a partir de metodologias unificadas e multidisciplinares, permitindo conhecer a fauna e flora e entender como diferentes populações originárias utilizaram e transformaram as paisagens ao longo dos séculos.
Os eixos específicos de pesquisa em cada uma dessas terras indígenas são co-construídos em conjuntoentre cientistas e comunidades, já que cada um delas possui configurações étnicas, históricas e socioambientais complexas. Assim como desafios e demandas variados.
Colaboração e tecnologia
Para realizar esta pesquisa, o projeto conta com um equipe interdisciplinar e intercultural, com arqueólogos, antropólogos, biólogos e linguistas, bem como uma estrutura de pesquisa colaborativa, com pesquisadores acadêmicos e pesquisadores indígenas formados para desempenharem tarefas de pesquisa de campo nos territórios.
Além do intercâmbio entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e de ações formativas de pesquisadores indígenas num contexto interdisciplinar, o projeto se estrutura a partir de um conjunto de temas transversais que possibilitam de fato a articulação e valorização de diferentes saberes.
Na Terra Indígena Alto Xingu, essa é uma continuação das pesquisas arqueológicas realizadas por Michael Heckenberger e os Kuikuro desde os anos 1990, que geraram uma imensa base de dados sobre a ocupação da área que mostraram a longevidade das ocupações e a persistência das práticas culturais ao longo do tempo.
As pesquisas evidenciaram um verdadeiro sistema de assentamentos, com aldeias circulares monumentais e evidências de alterações massivas na paisagem.

Pioneiro em mapeamento colaborativo, o projeto vem aplicando tecnologias avançadas, incluindo o uso da tecnologia LiDAR – um sistema óptico de detecção remota que mede propriedades da luz refletida para calcular distâncias – instalada em drones.
Essas ferramentas geoespaciais oferecem respostas locais e contextualizadas a desafios ecológicos, climáticos e políticos urgentes, além de promover a ciência colaborativa orientada a problemas, desde o início.
Os desafios do Alto Xingu
O Alto Xingu guarda a última ilha de floresta no arco do desmatamento do sul da Amazônia e enfrenta desafios urgentes como a perda de florestas relacionadas ao clima e o rápido desmatamento. O mapeamento arqueológico dentro e no entorno do território é ferramenta fundamental para o gerenciamento territorial e oferece uma forma de resistência frente às ameaças e são também um contraponto às abordagens colonialistas e tutelares comumente aplicadas a povos indígenas no Brasil.
Já a temática transversal “Káali e a Biodiversidade” foi escolhida como prioritária para a pesquisa o alto rio Negro. Ela toma como ponto de partida a história de tradição oral dos povos Baniwa e Koripako sobre Káali, o “demiurgo” (ou “semideus”) da agricultura. Seu mito orienta pesquisadores indígenas na documentação de diferentes versões dessa narrativa, sistematizando o conhecimento etnobotânico sobre as plantas cultivadas.E como esse conhecimento poderá ser trabalhado pela arqueologia, pela etnologia e pela linguística histórica como forma de compreender as relações dos povos Baniwa e Koripako com as plantas na longa duração.
O valor histórico da agricultura no Rio Negro
Essa demanda se relaciona ao reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro como patrimônio cultural do Brasil pelo instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ocorrido em 2018. Uma consequência direta do registro é a criação de políticas públicas através de planos de salvaguarda desses patrimônios nacionais, e também o incremento das discussões patrimoniais junto às comunidades locais.
O projeto tem a duração de três anos (2025-2028) e é liderado pelo Museu Goeldi, agregando mais de oitenta pesquisadores, estudantes e bolsistas indígenas e não indígenas de diversas instituições amazônicas. O financiamento é da Iniciativa Amazônia+10, que une agências públicas de fomento à pesquisa, tanto brasileiras quanto internacionais.
Parcerias “de baixo para cima”
Colaboração é um processo que inclui o consentimento livre, prévio e informado, por meio da participação – aprender fazendo – e do engajamento da comunidade em todos os passos da pesquisa, incluindo suas aplicações de pesquisa, monitoramento e impactos de longo prazo.
Até o momento, tanto as consultas quanto as pesquisas iniciais vêm mostrando a potência das parcerias construídas de baixo para cima, com atuação direta nos territórios. Embora em fase inicial, as parcerias fomentada por pesquisas desta natureza podem suplantar a lógica predatória de exploração da biodiversidade historicamente impetrada na Amazônia.
Isso ressalta a natureza reflexiva e dialógica da pesquisa científica, a fricção da ciência na pesquisa contemporânea, incluindo vozes locais e a vida social da pesquisa, e a interseção de pontos de vista e o diálogo no próprio contexto da pesquisa que define como abordar e impactar a resiliência socioecológica e o patrimônio cultural.
O conhecimento indígena e suas formas de gestão de recursos refletem uma história profunda, que informa e inspira a juventude local a abordar os problemas atuais, abrangendo a relevância do patrimônio, do passado, para os desafios atuais. Essas formas tradicionais de gestão podem conter respostas, soluções alternativas para problemas atuais, à medida que as populações locais crescem e aumentam os esforços para manter ou restaurar as florestas.
As estratégias indígenas de gerenciamento de recursos contêm pistas importantes não apenas para a compreensão do passado, mas também para a criação de abordagens alternativas para o desenvolvimento regional sustentável para o futuro. Em resumo, o que resta de esperança para proteger a biodiversidade do sul da Amazônia, incluindo o rico legado da ocupação humana antiga e recente da região, é a colaboração indígena com a ciência híbrida e sensível ao contexto.





