Pela primeira vez na história das conferências climáticas da ONU, a COP30 será realizada em uma floresta tropical. O presidente Lula da Silva descreveu esse local simbólico como uma mensagem política clara: o mundo deve ouvir a Amazônia e seu povo. Sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, acrescenta que a floresta pode “nos mostrar o caminho”.
É uma medida bem-vinda e há muito esperada para aproximar os povos indígenas e as comunidades locais das negociações climáticas. As sociedades tradicionalmente organizadas e suas instituições, na Amazônia e em todo o mundo, desempenham um papel crucial na adaptação climática, na conservação da biodiversidade e na proteção ambiental. Os delegados ocidentais em Belém fariam bem em ouvi-los.
Defendendo a governança policêntrica e coletiva
Os territórios indígenas na Amazônia apresentam consistentemente taxas de desmatamento mais baixas e maior armazenamento de carbono do que as terras vizinhas, funcionando como sistemas eficazes de mitigação do clima. Para proteger seus meios de subsistência e suas florestas, as comunidades indígenas desenvolveram sofisticados sistemas de governança territorial baseados em redes descentralizadas que ligam as autoridades locais a federações regionais, grupos da sociedade civil, pesquisadores e governos subnacionais. Operando em várias escalas, essas parcerias fortalecem a resiliência e a continuidade da gestão territorial.
Essas estruturas policêntricas, com vários centros de autoridade sobrepostos, permitem que os atores locais se auto-organizem e tomem decisões autônomas. Diferentes comunidades indígenas colaboram com parceiros externos para proteger ambientes sob pressão.
Os Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia
Elinor Ostrom foi a primeira mulher e cientista política a ganhar o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas. Ao elaborar seus princípios sobre como gerenciar de forma sustentável recursos de uso comum, como florestas ou corpos d’água, Ostrom poderia muito bem ter ilustrado seu famoso livro com o caso dos Ashaninka.
Por volta do final do século XIX, um pequeno grupo de Ashaninka deixou a Selva Central peruana e se estabeleceu ao longo do Rio Amônia, na região do Alto Juruá, no Brasil. Ao chegarem, foram submetidos a um sistema de peonagem e quase escravidão, trabalhando para os patrões locais. Após décadas de resistência e luta, seu território foi oficialmente demarcado pelo governo brasileiro em 1992.
Naquela época, aproximadamente 30% dos cerca de 87.000 hectares de terra haviam sido desmatados, principalmente para a criação de gado e a extração de madeira por colonos não indígenas. Desde então, os Ashaninka empreenderam amplos esforços de reflorestamento e, atualmente, apenas cerca de 0,5% de seu território permanece sem cobertura florestal, limitado principalmente a áreas de moradia e pequenos roçados. Seu notável trabalho de restauração ambiental foi reconhecido internacionalmente, rendendo-lhes o Prêmio Equador em 2017 e o Prêmio Newton em 2018.
Antes presos a sistemas de dívida e dependência, e resistindo durante séculos ao avanço de invasores, os Ashaninka do Brasil agora estão entre os líderes ambientais do mundo. Em novembro deste ano, eles chegarão à COP 30 em Belém não como vítimas da história, mas como protagonistas e visionários. Eles trazem consigo as vozes da floresta, a memória da luta e um apelo à mudança.
Os Ashaninka demonstram como uma instituição e um sistema de governança focados na autossuficiência, na construção de consenso, nos interesses coletivos e em mecanismos de gestão compartilhada podem ser eficazes para governar bens comuns. Como a parceria com organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa, organizações internacionais e órgãos do governo local (por exemplo, para coordenar a vigilância, o mapeamento participativo, o gerenciamento comunitário de incêndios e a comercialização de produtos florestais não madeireiros) pode ajudar a desacelerar a extração ilegal de madeira, a mineração e o crime organizado.
Adaptação às realidades locais
Em vez de simplesmente culpar os responsáveis pelas mudanças climáticas, os Ashaninka vêm adotando medidas eficazes de adaptação ao clima. Melhoram o acesso à água, promovem o gerenciamento eficaz de incêndios, criam sistemas de alerta precoce, protegem sementes nativas que são resistentes à seca, avaliam sinais florestais para prever ameaças climáticas e estabelecem centros de treinamento para promover práticas agroflorestais.
Como os impactos ambientais se manifestam em escala local, o conhecimento específico de cada território é essencial. Por meio da interação intergeracional com suas terras, as populações indígenas monitoram os sinais sazonais, os ciclos hidrológicos, as condições do solo e o comportamento das espécies. São capazes de detectar mudanças ambientais muito antes que os dados de satélite ou os modelos climáticos as registrem.
Uma iniciativa importante a ser lançada em Belém é o Fundo de Financiamento para Florestas Tropicais (TFFF), que tem como objetivo levantar US$ 125 bilhões para conservar as florestas que absorvem carbono. Para evitar os erros de mecanismos financeiros anteriores, o TFFF deve colocar as comunidades indígenas no centro de sua governança. Elas são as principais detentoras do conhecimento das condições socioecológicas regionais, e o passado demonstrou que abordagens uniformes de conservação raramente funcionam. As populações indígenas ajudam a traduzir e reavaliar continuamente a ação climática para garantir que ela se alinhe aos contextos ecológicos, políticos e culturais locais.
Sistemas tradicionais de governança adaptam regras amplas de conservação às realidades locais, por exemplo, definindo quais áreas podem ser usadas sazonalmente e quais devem permanecer intocadas. Isso garante que a proteção não comprometa a vida cotidiana e os meios de subsistência locais. Para que o financiamento climático seja bem-sucedido, as comunidades indígenas devem ser capazes de adaptar os esquemas de financiamento às suas próprias tradições de compartilhamento e tomada de decisões. Essa autodeterminação local ajuda a evitar tensões redistributivas e torna as iniciativas mais sustentáveis.
As autoridades indígenas adaptam os programas externos para que se ajustem às relações sociais e ecológicas da comunidade, transformando políticas distantes em arranjos duradouros e ajustados à realidade local. Cabe ao mundo ocidental apoiar instrumentos de financiamento de ecossistemas concebidos pelas próprias instituições indígenas, como o Podáali.
Francisco Piyãko, um dos líderes da comunidade Ashaninka Apiwtxa, nos lembra:
A sensibilidade da floresta precisa ser compreendida. Os povos indígenas devem ser ouvidos sobre o que já conhecem sobre a natureza. Para dizer o que deve ser feito, o que pode e o que não pode. Porque tem sim como preservar e como proteger a Amazônia.
Wewito Piyãko, irmão de Francisco e também líder Ashaninka, complementa:
Quando as coisas são planejadas apenas de lá para cá, quando chegam aqui, elas não correspondem à nossa realidade. Nossa realidade é diferente. Portanto, precisamos pensar juntos, para podermos dizer: Olha, isso se encaixa, isso não.
Coprodução de conhecimento
Na Amazônia, a pesquisa conjunta sobre práticas tradicionais de enriquecimento do solo, como a terra preta ou sistemas agroflorestais complexos conhecidos como chagras, pode ampliar as soluções sustentáveis para sequestrar carbono, apoiar a produção de alimentos e aumentar a resiliência climática. Em toda a Amazônia, encontramos a terra preta, solos férteis de origem antrópica formados por antigas populações indígenas através do acúmulo de matéria orgânica e carvão vegetal. Esses solos mostram que os povos indígenas não apenas preservaram os ecossistemas, mas também aumentaram ativamente sua fertilidade ao longo de milênios.
Essa coprodução de conhecimento aprimora a mitigação global ao gerar dados mais precisos e relevantes no contexto das comunidades e ao identificar estratégias de resiliência climática efetivas. Ela também fortalece a legitimidade e o poder de negociação dos representantes indígenas, permitindo que influenciem a elaboração de políticas ambientais e garantam que as medidas climáticas sejam eficazes localmente.
Wewito Piyãko resume a questão em poucas palavras:
Se a ciência nos ouvisse e uníssemos forças para fazer o trabalho juntos da maneira que pensamos, acredito que poderíamos realizar muitas coisas boas.
Difusão de ontologias indígenas
A comunidade internacional precisa criar espaços onde as filosofias indígenas, fundamentadas na relacionalidade e na reciprocidade, possam circular pelos contextos local, nacional e global. Essas esferas de decisão interligadas permitem que os detentores de conhecimento indígena não apenas participem, mas influenciem a maneira como as sociedades entendem o relacionamento dos seres humanos com a natureza.
Se as delegações estiverem dispostas a ouvir em Belém, poderão reconsiderar suas visões de mundo extrativistas em favor de perspectivas baseadas na interdependência. A difusão de ontologias indígenas já está remodelando o pensamento jurídico e político, por exemplo, por meio de disposições de direitos da natureza.
Essas ideias tomam forma concreta nas práticas e cosmologias diárias dos povos amazônicos. Como muitos outros povos ameríndios, os Ashaninka se relacionam com a floresta por meio da cooperação e da interdependência com seres não humanos. Para eles, a floresta é habitada por lugares que têm seus próprios seres guardiões, cada um com agência, história e laços de parentesco. Esses seres devem ser respeitados e tratados com respeito. Essa forma relacional de viver com a floresta garante que os Ashaninka colham apenas o estritamente necessário para sua subsistência, evitando a exploração predatória dos recursos.
O sistema tradicional de troca ayõpare, por exemplo, prevê que a vida comunitária deve ser orientada por princípios que transcendem o comércio material, enfatizando relacionamentos baseados no respeito mútuo e na reciprocidade. Com base nesse princípio, a Cooperativa Ayõpare Ashaninka só comercializa produtos cultivados de forma sustentável. Eles comercializam esses produtos apenas com não membros da comunidade que também compartilham os valores e as metas dos Ashaninka.
“Faça desta COP uma COP indígena!”
Perguntado sobre sua expectativa para a próxima conferência climática, Wewito Piyãko é muito claro:
Seria importante que a COP30 ouvisse a voz da Amazônia. Porque às vezes eles ficam apenas entre autoridades, parlamentares e governos, e não ouvem realmente aqueles que vivem na Amazônia – aqueles que são a Amazônia.
As comunidades indígenas ouvem suas florestas. Os governos nacionais e os negociadores ocidentais devem dar atenção às suas preocupações.
Belém tem nas mãos uma oportunidade única e histórica de transformar esta conferência climática na primeira COP verdadeiramente indígena.



			


                               
                             

		
		
		
		