Ameaças de Trump controlam agenda política global e redesenham zona de influência dos EUA na América Latina

por The Conversation
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Ameaças de Trump controlam agenda política global e redesenham zona de influência dos EUA na América Latina

Há exatamente 80 anos, os líderes das três principais potências aliadas na Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha) reuniram-se em Yalta, uma cidade turística na Crimeia, na costa do Mar Negro, para a última cúpula de chefes de estado antes da derrota militar do nazifascismo, que aconteceria três meses depois. Entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, Franklin D. Roosevelt, Joseph Stalin e Winston Churchill e suas respectivas delegações selaram acordos que teriam consequências fundamentais para o futuro da política internacional.

Os líderes ocidentais concordaram que os futuros governos dos países da Europa oriental que faziam fronteira com a União Soviética deveriam ser “amigáveis” ao regime soviético. Os soviéticos também teriam uma zona de influência na Manchúria após a rendição do Japão. E finalmente, todas as partes concordaram com o plano americano para os procedimentos de votação no Conselho de Segurança da futura Organização das Nações Unidas, que teria cinco membros permanentes (incluindo a China e a França), cada um com direito de veto em todas as decisões.

Oito décadas depois, o império britânico e a União Soviética só existem nos livros de história, e a China tornou-se a potência global emergente. A ONU e o sistema multilateral se encontram em crise de identidade e de legitimidade, e a entidade sofre um ataque sem precedentes vindo exatamente do país que propiciou a sua criação. De volta na Casa Branca, Donald Trump parece querer colocar para trás os ponteiros do relógio da história. Em seu discurso de posse, ele apontou como seu modelo inspirador William McKinley, o último presidente de EUA no século XIX (1897-1901) e iniciador do imperialismo norte-americano.

Trump pratica a diplomacia do “Big Stick”, mas sem suavidade

McKinley foi um protecionista ferrenho e um expansionista determinado, que derrotou a Espanha em 1898, dando aos Estados Unidos o controle de Cuba e Porto Rico, no Caribe, e das Filipinas, na Ásia. No mesmo ano, ele decretou a anexação do Havaí, o que lhe deu o controle das rotas de navegação no Oceano Pacífico. Seu sucessor, Teddy Roosevelt, deu continuidade à política expansionista, articulando uma estratégia que ele chamou de diplomacia do “Big Stick”, cujo lema era “fale com suavidade e carregue um grande porrete, e você irá longe”. Trump nem fala com suavidade: em questão de dias anunciou querer adquirir a Groenlândia (território da Dinamarca), recuperar o controle do Canal do Panamá, renomear o Golfo do México como “Golfo da América”. Entre piada e galhofa, ele também disse que o Canadá deveria tornar-se o 51º estado dos EUA.

Já no que diz respeito ao porrete, Trump vem anunciando diariamente rajadas de medidas agressivas e unilaterais, tanto em nível nacional quanto internacional. Só no dia da posse, em 20 de janeiro 2025, ele assinou 26 diferentes “ordens executivas” que, entre outros ataques ao sistema multilateral, determinam a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre mudanças climática, a saída da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o congelamento imediato e por 90 dias dos fundos de assistência humanitária e cooperação internacional. Duas semanas mais tarde, o multibilionário Elon Musk, encarregado do recém-criado Departamento de Eficiência do Governo, anunciou que Trump e ele iriam fechar completamente a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID), criada em 1961 pelo então presidente John F. Kennedy.

Segundo a agência de notícias Reuters, a administração Trump poderia reestabelecer sanções contra o Tribunal Penal Internacional e seus juízes, como já fora feito em 2020. E em 4 de fevereiro, aniversário do início da Conferência de Yalta, 80 anos atrás, Trump assinou mais uma ordem executiva, anunciando que em 180 dias deverá ser completada “uma análise de todas as organizações intergovernamentais internacionais das quais os Estados Unidos são membros […] e fornecer recomendações se os Estados Unidos devem se retirar de qualquer uma dessas organizações, convenções ou tratados”. Na mesma canetada, Trump anunciou também que os EUA se retirariam da UNRWA (a agência da ONU que fornece assistência aos refugiados palestinos) e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e que reavaliariam a participação na UNESCO.

Trump também ameaçou queimar as pontes da globalização comercial que moldou o mundo nas últimas décadas. Em 30 de janeiro, ele anunciou a imposição de tarifas de 25% sobre as importações desde México e Canadá (contrariando frontalmente o acordo de livre comercio da América do Norte que remonta a 1994 e foi modificado pela primeira administração Trump em 2018). As tarifas contra México e Canadá foram provisoriamente suspensas por 30 dias em 3 de fevereiro após os dois países prometerem militarizar suas fronteiras com os Estados Unidos para barrar migrantes e tráficos ilegais.

Estratégia visa marginalizar os espaços de negociação e cooperação multilaterais

Ao criar novos fatos sem parar e dar constantemente declarações bombásticas, Trump consegue controlar o noticiário e a agenda política global (e interna), impedindo que seus adversários se organizem ou tentem reagir de forma eficaz. Para além da tática de choque, no entanto, no que diz respeito à política internacional parece emergir uma estratégia clara, que visa marginalizar, ou até destruir, os espaços de negociação, mediação e cooperação multilaterais (o sistema ONU e as outras organizações internacionais), recolocando ao centro das relações internacionais as relações bilaterais entre estados, o uso da coerção (militar ou econômica), e as zonas de influência das grandes potências.

A Organização das Nações Unidas foi, em sua origem, uma iniciativa concebida e dirigida pelos Estados Unidos: seguindo as instruções de Roosevelt, o Departamento de Estado iniciou a preparação de planos secretos para o pós-guerra ainda em 1939, logo após a invasão da Polônia pelas tropas nazistas. A partir de 1942, Roosevelt passou a propagar a ideia dos “quatro policiais” que, após o fim da guerra, garantiriam a paz global – os “quatro grandes” sendo Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e China. Quando finalmente foi criada a ONU, na Conferência de San Francisco (abril-junho 1945), a guerra fria ainda não estava totalmente no horizonte, e a finalidade da nova organização era essencialmente limitada a “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”.

Ao longo das décadas, ao redor do Secretariado das Nações Unidas foi construído um emaranhado de dezenas de Agências, Fundos e Programas específicos, os países membros passaram dos 51 iniciais para os atuais 193, e o escopo do Sistema ONU passou a ser muito mais amplo e ambicioso.

A expansão da agenda das organizações multilaterais, principalmente desde o fim da Guerra Fria, no entanto, tornou evidente um forte contraste entre a prática do multilateralismo e projeto autoritário de sociedade que defendem Trump e outros líderes da extrema direita, como Javier Milei, Nerendra Modi ou Viktor Orbán.

Em termos gerais, a agenda multilateral é cosmopolita e socialmente progressista; ela apoia a promoção de igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos, direitos LGBTQIA+, mobilidade humana global, desenvolvimento sustentável e transição econômica verde para combater a crise climática. A ideia de progresso em termos de desenvolvimento, inclusão, liberdades, direitos e democracia colide com a aspiração de retorno a hierarquias sociais, raciais e geográficas claras e de domínio patriarcal incontestável, com a família tradicional e a religião como pedras angulares dos projetos nacionais (e nacionalistas).

Visão de mundo da extrema direita entra em conflito com o sistema de governança global

A visão de mundo da extrema direita entra em conflito direto com um dos principais pilares do sistema de governança global pós-Segunda Guerra Mundial: a cooperação entre os Estados membros no sistema das Nações Unidas e em outras organizações regionais e internacionais. O princípio subjacente dessa colaboração é que uma perda relativa, mutuamente acordada e totalmente negociada da soberania nacional é necessária para enfrentar os desafios globais (como a crise climática) e alcançar bens públicos internacionais e objetivos compartilhados (como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável promovidos pela ONU).

A política da “América Primeiro” de Trump ignora esta profunda interdependência de forma tão grotesca quanto perigosa. Em termos concretos, a ação diplomática dos governos nacionais liderados pela extrema direita vem se concentrando na criação de obstáculos a questões ou agendas específicas (como a igualdade de gênero ou a eliminação gradual dos combustíveis fósseis) ou na tentativa de redesenhar setores inteiros do sistema multilateral considerados contrários a valores morais conservadores ou a uma visão estreita dos interesses nacionais.

A primeira presidência de Trump (2017-2021), assim como o governo de Jair Bolsonaro no Brasil (2019-2022), foi de certa forma hesitante em seu ataque contra as instituições democráticas internas e o sistema multilateral. Tanto Trump como Bolsonaro oscilaram entre o respeito a procedimentos e normas estabelecidas e a tentativa de jogar o tabuleiro para o alto e tentar estabelecer novas regras condizentes com sua visão autoritária e reacionária.

Trump parece decidido a destruir setores inteiros do aparato estatal

As tentativas de ruptura radical, tanto em Washington como em Brasília, só se deram no momento da transição para a normalidade democrática, e foram derrotadas. De volta à Casa Branca, Trump empunhou metaforicamente a motoserra levantada por Milei na Argentina, decidido, desta vez, a destruir setores inteiros do aparato estatal e não deixar de pé nenhuma regra, interna ou internacional, que possa limitar suas ações. Não haverá diálogo nem gradualismo na implementação de seu projeto de retorno à era do unilateralismo bruto.

Nas relações bilaterais com países considerados menores ou menos ameaçadores, uma combinação de ameaças e imposição de tarifas e sanções já emergiu como o instrumento preferencial para o exercício do poder da nova administração estadunidense. A brutal postura de Trump diante à tentativa de reação colombiana à deportação de migrantes ilegais em aviões militares marcou o carimbo dos novos tempos: a Colômbia foi ameaçada de tarifas e sanções caso não se adaptasse aos desígnios de Washington, e o presidente Gustavo Petro acabou se curvando.

Da mesma forma, no Panamá, destinação da primeira missão internacional do novo Secretário de Estado estadunidense, Marco Rubio, para aplacar Trump e suas ameaças de reocupar o canal, o presidente José Raul Mulino acabou anunciando em 3 de fevereiro que o país sairia da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), o gigantesco plano global de investimentos em infraestrutura promovido por Beijing.

Nas relações com Rússia e China, no entanto, Trump vem adotando tons muitos diferentes. Ele já demonstrou certa simpatia pela posição russa em relação à invasão da Ucrânia, declarou que ele não teria permitido que o conflito começasse se tivesse sido presidente em 2022, e anunciou que os EUA estão conversando “muito seriamente” com a Rússia com a finalidade de “fazer terminar a guerra”. Vladimir Putin retribuiu o favor, abraçando a teoria conspiratória pela qual a eleição de Joe Biden teria sido uma fraude. “Sempre tivemos uma relação comercial, pragmática, mas também de confiança com o atual presidente dos EUA”, disse Putin em 23 de janeiro numa entrevista para a televisão de Estado russa. “Eu não posso discordar dele que, se ele tivesse sido presidente, se eles não tivessem roubado a vitória dele em 2020, a crise que surgiu na Ucrânia em 2022 poderia ter sido evitada”.

Falando por videoconferência aos empresários reunidos no Fórum Econômico Mundial em Davos, também em 23 de janeiro, Trump declarou que poderia tentar negociar um novo acordo de controle de armas com Vladimir Putin e, possivelmente, com a China. Parece muito improvável que a China concorde com essas negociações até que seu desenvolvimento nuclear atinja alguma paridade com os Estados Unidos e a Rússia, algo que pode levar até duas décadas. Até lá, qualquer acordo provavelmente será bilateral entre Washington e Moscou.

A China é, por enquanto, um poderoso adversário econômico mais que militar. Mas até na questão das tarifas, Trump agiu com mais suavidade com a China de que com México e Canada. Ele anunciou um imposto adicional de 10% sobre as importações de produtos chineses; a China, por seu lado, retrucou que entraria com uma queixa contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comercio (OMC) e que, se necessário, tomaria “contramedidas”. Com esta reação, a China demonstrou publicamente em ter interesse em preservar pelo menos algumas das regras do multilateralismo que Trump pretende dinamitar.

A postura de Trump diante das outras grandes potências parece indicar uma busca de negociação de esferas de influência, nos moldes de negociações no século XIX entre países coloniais europeus, ou entre as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial na Conferência de Yalta e ao longo da Guerra Fria.

A “volta da geopolítica” ao centro das relações internacionais vem sendo discutida por especialistas em poder como Stefano Guzzini desde o final da Guerra Fria, há mais de três décadas, mas neste momento o tema assume nova relevância ao esmagar outras formas de organização das relações internacionais como normas ou valores compartilhados. A geoeconomia acompanha a competição focada em território com disputas por hegemonia tecnológica, produtiva e comercial.

Neste contexto, o equilíbrio e a estabilidade podem ser alcançados através da dissuasão com demonstração de força militar e na medida em que as grandes potências negociam (ou renegociam) velhas e novas zonas de influência. Durante a Guerra Fria, a crise dos misseis em Cuba (1962) e a convergência sobre a necessidade de evitar a qualquer custo um uma guerra nuclear acabaram gerando um certo respeito pelas zonas de influência soviética e norte-americana – à época, a China era ator marginal na disputa pela supremacia global.

A agressividade da extrema direita trumpista, no entanto, não se deu num vazio. Na Ucrânia e na Crimeia, como antes no Iraque, na Líbia, no Kosovo, o uso unilateral da força reabriu uma caixa de Pandora que havia sido fechada por décadas. Os Estados voltaram a usar suas máquinas militares com base em cálculos políticos mais ou menos míopes ou cínicos, sem referência a instituições multilaterais e evitando negociações prévias que esgotem todas as soluções diplomáticas possíveis para conflitos latentes.

Mesmo estados menores têm impunidade garantida pela proteção política do Conselho de Segurança

A invasão da Ucrânia evidenciou mais uma vez a incapacidade do sistema multilateral de responder às ameaças à segurança e ao direito internacional quando estas são provocadas pelas ações de uma das potências nucleares com assento permanente e poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. O comportamento dessas potências também se reflete nas atitudes e ações de Estados menores que – da Israel à Etiópia, da Arábia Saudita ao Ruanda – não hesitam em usar armas contra países vizinhos, confiantes na impunidade garantida pela força e na proteção política oferecida alguns dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.

Num mundo de novas disputas e negociações sobre zonas de influência, a América Latina adquiriu uma relevância para a política externa norte-americana sem precedentes há mais de um século; Marco Rubio é também o primeiro secretário de Estado de origens latinas (seus pais eram cubanos) na história dos Estados Unidos. A disputa por influência econômica e política entre China e EUA é parte de cenário geoestratégico recente da região. A possibilidade de reafirmação da América Central e do Caribe como zona de influência direta norte-americana e do hemisfério ocidental como uma espécie de vizinhança controlada reabre uma longa e amarga página da história que parecia fechada desde o fim do ciclo das ditaduras militares apoiadas pelos EUA durante a guerra fria.

A América Latina e o Caribe têm uma longa tradição diplomática multilateral: 19 países da região estiveram entre os 51 membros fundadores da ONU, em 1945. Mas ao longo das décadas, todas as tentativas de maior integração política regional fracassaram, inclusive durante a onda rosa de governos progressistas entre 1999 e 2015.

As instituições que ainda existem estão paralisadas ou impotentes. A presidenta de Honduras, Xiomara Castro de Zelaya, tentou convocar uma reunião de emergência da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos(CELAC) para discutir as deportações de massa de imigrantes latinos determinadas por Trump, mas foi forçada a cancelá-la “por falta de consenso”, como ela explicou em sua conta na rede social X. Os dois aliados entusiasmados de Trump na região – o presidente da Argentina, Javier Milei, e o de El Salvador, Nayb Bukele – se encarregaram de fazer naufragar a tentativa de encontrar uma resposta comum a esta primeira crise diplomática.

A mensagem é clara: cada país está sozinho diante da renovada agressividade dos Estados Unidos.

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