Israel se tornou o primeiro país a proibir a atuação de uma instituição das Nações Unidas em seu território, a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos no Próximo Oriente (UNRWA), classificando-a como “organização terrorista” em uma votação quase unânime de 92 a 10.
Essa medida sem precedentes levanta questões profundas: o que significa para uma agência global, reconhecida e financiada pela maioria das nações, ser rotulada como “organização terrorista”? Além de comprometer a missão humanitária da UNRWA, tal designação também gera incertezas sobre outras agências internacionais que atuam na defesa dos direitos humanos e da paz.
Uma escalada deliberada
Criada em 1949, a UNRWA fornece serviços essenciais aos refugiados palestinos, incluindo educação, assistência médica e apoio social na Cisjordânia, Gaza, Líbano, Síria e Jordânia. Embora Israel há muito critique a agência, a nova lei eleva as queixas a nível legislativo, proibindo sua atuação no país e estendendo a proibição, de forma controversa, a territórios sob ocupação israelense, conforme definido pelo direito internacional.
Desde outubro de 2023, Israel tem destruído sistematicamente edifícios da UNRWA em Gaza, incluindo escolas que abrigavam pessoas deslocadas. Em maio de 2024, a sede da agência em Jerusalém Oriental foi temporariamente fechada após um ataque de “extremistas israelenses”.
Israeli soldiers rejoicing as a UN run school in Beit Hanoun in northern Gaza blown is turned to rubble by Israel.
The UN uses their buildings to offer shelter to displaced Palestinians.
133 UN staff have been murdered by Israel.
pic.twitter.com/6VIOk3LpSw
— Howard Beckett (@BeckettUnite) December 12, 2023
Soldados israelenses comemoram após Israel reduzir a escombros uma escola da ONU em Beit Hanoun, no norte de Gaza.
A ONU utiliza suas instalações para abrigar palestinos deslocados.
Israel já matou 133 funcionários da organização.
Segundo o Centro Jurídico para os Direitos das Minorias Árabes em Israel (Adalah), a lei viola as medidas provisórias ordenadas pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) e pode infringir a Convenção sobre Genocídio e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Além disso, ameaça um suporte vital para mais de 2,5 milhões de refugiados palestinos nos territórios palestinos ocupados e “representa, essencialmente, uma tentativa deliberada de enfraquecer a UNRWA e sua missão essencial de fornecer alívio, educação e desenvolvimento humano”. Especificamente, a lei visa privar os palestinos deslocados durante a Nakba (termo árabe que significa “catástrofe” e se refere ao êxodo palestino) de 1948 e a guerra de 1967 do status de refugiado e do direito de retorno. O Adalah instou a comunidade internacional a responsabilizar Israel.
Os governos da Irlanda, Noruega, Eslovênia e Espanha emitiram uma declaração conjunta criticando a nova lei, chamando-a de um “sério precedente para o trabalho das Nações Unidas e para todas as organizações que integram o sistema multilateral”.
Relações com a ONU em deterioração
A recente lei da Knesset (Assembleia Legislativa unicameral de Israel) evidencia a rápida deterioração das relações entre Israel e as Nações Unidas, desencadeando uma crise na ordem pós-Segunda Guerra Mundial, criada para garantir a paz e os direitos humanos. A legislação desafia a autoridade do direito internacional e a relevância das instituições voltadas à proteção dos direitos humanos, podendo incentivar outros países a seguirem o mesmo caminho.
Em entrevista à i24News em agosto de 2024, o ex-enviado de Israel às Nações Unidas, Gilad Erdan, declarou que “o prédio da ONU em Jerusalém deveria ser fechado e varrido do mapa”. Antes disso, em maio, Erdan ganhou notoriedade ao rasgar a Carta das Nações Unidas durante um discurso na Assembleia Geral.
Israeli ambassador to the UN pathetically brought a paper shredder to the UN General Assembly to shred the UN Charter in protest over majority resolution to expand Palestine’s “rights and privileges” at the UN. pic.twitter.com/NsOxHgMxph
— Marwa Fatafta مروة فطافطة (@marwasf) May 10, 2024
O embaixador de Israel na ONU levou, de maneira patética, um triturador de papel à Assembleia Geral para destruir a Carta das Nações Unidas em protesto contra a resolução, aprovada pela maioria, que expandia os “direitos e privilégios” palestinos na organização.
Em julho, a Knesset reforçou sua postura desafiadora com uma resolução também aprovada por quase unanimidade (68-9), rejeitando a criação de um Estado palestino, o que contraria os princípios da solução de dois Estados estabelecidos nos Acordos de Oslo e em todas as resoluções relevantes da ONU, amplamente ignoradas por Israel.
Um padrão de desobediência à ONU
O veto de Israel à UNRWA não é um incidente isolado. Faz parte de uma longa história de antagonismo contra as Nações Unidas e suas instituições. Em outubro, Israel declarou o secretário-geral da ONU, António Guterres, persona non grata e o impediu de entrar no país.
Essa medida ocorre após diversas ocasiões em que Israel negou vistos a representantes e investigadores da ONU que examinavam abusos de direitos humanos no país e nos territórios palestinos ocupados. Israel tem rejeitado consistentemente os apelos da organização por investigações sobre supostas violações, ignorando resoluções relacionadas à expansão de assentamentos e ações militares em Gaza, Cisjordânia e Líbano.
O antagonismo de Israel em relação à ONU vai além dos territórios palestinos. As tropas da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FINUL), responsáveis por monitorar a paz na fronteira libanesa-israelense, têm sido alvo de ataques diretos, provocando repúdio. Em 12 de outubro, após sucessivas ofensivas israelenses contra a força de paz no sul do Líbano, 44 países, incluindo três membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, emitiram uma declaração conjunta condenando essas ações.
Em maio de 2024, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução condenando os ataques contra funcionários da organização e trabalhadores humanitários em zonas de conflito. Somente em Gaza, ações israelenses resultaram na morte de pelo menos 237 membros de sua equipe.
Resposta internacional e responsabilização
A reação da comunidade internacional tem sido mista. Alguns países expressaram preocupação com as perigosas implicações do veto para funcionários da ONU ao redor do mundo, mas poucos propuseram sanções significativas contra Israel. Embora os países europeus tenham condenado o tratamento de Israel à UNWRA, não impuseram sanções econômicas ou políticas. A ausência de consequências levanta dúvidas sobre a credibilidade do direito internacional, que, sem mecanismos eficazes de aplicação, corre o risco de se tornar meramente simbólico.
Esses acontecimentos ocorrem em meio a uma escalada da violência, principalmente em Gaza e no Líbano, que ameaça arrastar toda a região em uma guerra de maior escala. As operações militares israelenses em Jabalia e no norte de Gaza resultaram em um alto número de vítimas civis e em condenação internacional, enquanto o país enfrenta acusações de genocídio consideradas plausíveis pela Corte Internacional de Justiça.
A agência de pesquisas Forensic Architecture, da Universidade de Londres, publicou recentemente um relatório de 827 páginas e uma plataforma interativa chamada “Cartografia do Genocídio“, que documenta de forma detalhada o impacto da guerra em Gaza.
NEW: ‘A Cartography of Genocide’. Since October 2023, we have collected and analysed data related to Israel’s military campaign in Gaza. Our findings indicate that Israel has systematically targeted all aspects of civilian life. https://t.co/UUxYqpTF72 pic.twitter.com/lpqv78S5c4
— Forensic Architecture (@ForensicArchi) October 29, 2024
NOVO: ‘Cartografia do Genocídio’. Desde outubro de 2023, temos coletado e analisado dados sobre a campanha militar de Israel em Gaza. Nossos resultados mostram que o país tem, de forma sistemática, atingido todos os aspectos da vida civil.
Especialistas em direitos humanos da ONU alertaram que Israel corre o risco de se tornar um “pária” internacional. No primeiro aniversário da guerra de 7 de outubro, eles afirmaram que “o mundo assistiu a uma escalada brutal da violência, resultando em atos de genocídio, limpeza étnica e punição coletiva contra os palestinos, o que ameaça desestabilizar o sistema multilateral internacional”.
A hostilidade de Israel contra os órgãos da ONU compromete a capacidade da organização de responder de forma eficaz à crescente crise humanitária na região. Com a UNRWA proibida de atuar nos territórios sob controle israelense, milhões de pessoas ficarão sem assistência e serviços essenciais.
Um precedente perigoso
O veto legislativo de Israel à UNRWA reflete seu persistente desrespeito ao direito internacional. Ao tolerar o contínuo antagonismo do país, a comunidade global arrisca enfraquecer as instituições criadas para preservar a ordem e a justiça, comprometendo sua capacidade de ação, ainda que simbólica, em conflitos futuros.
A situação destaca a necessidade de um compromisso renovado com a cooperação internacional e a verdadeira responsabilização. Sem uma posição unificada contra o crescente padrão de desafios, a ONU e suas agências correm o risco de perder poder nas missões para as quais foram criadas, em um momento crítico da história global. A falta de responsabilização de Israel pode permitir que esse precedente desgaste o sistema como um todo e prejudique ainda mais a credibilidade da ONU, após mais de um ano sem conseguir impedir crimes documentados, que continuam a ser cometidos na devastadora guerra em Gaza.