Pessoas com cartazes na mão participam de coletiva de imprensa para apresentar identificação de duas ossadas de desaparecidos políticos: Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil/Uso autorizado
Este artigo, escrito por Marcelo Oliveira e editado por Thiago Domenici, foi originalmente publicado pela Agência Pública em 16 de abril de 2025. Foi editado por motivos de tamanho e contexto, e republicado aqui sob acordo de parceria com a Global Voices.
Para o Estado brasileiro e a família do pedreiro e militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR, grupo de luta armada) Dênis Casemiro, morto sob tortura, aos 28 anos, por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em maio de 1971, seus restos mortais haviam sido os primeiros a serem identificados após a abertura da Vala Clandestina de Perus, em setembro de 1990. O enterro digno ocorreu, em 13 de agosto de 1991, na cidade de Votuporanga, estado de São Paulo, terra natal dos Casemiro, quase 20 anos depois da sua morte.
A identificação realizada há 34 anos por legistas da Unicamp (Universidade de Campinas), porém, estava errada. Ela foi corrigida, neste 16 de abril, graças a uma série de novos exames realizados pelo Projeto Perus, parceria entre o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Prefeitura de São Paulo, e executada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia e Forense (CAAF/Unifesp) e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
No CAAF, os restos mortais que agora se confirmaram como pertencentes a Dênis Casemiro foram submetidos a três tipos distintos de análises: uma delas é a identificação genética, na qual é extraído DNA a partir de uma fração dos restos mortais e cruzados com material genético de parentes de primeiro grau do morto.
Esse trabalho é coordenado pelo professor Edson Teles, que retomou a identificação dos restos mortais da Vala de Perus, após o trabalho ser praticamente paralisado e a CEMDP extinta no governo Jair Bolsonaro (2019-2022). A recriação da comissão pelo governo Lula, em 2024, possibilitou a retomada das novas identificações.
No total, na Vala de Perus, foram encontradas 1.092 ossadas, entre as quais podem estar os restos mortais de 42 desaparecidos políticos. O banco genético do projeto possui dados de 34 famílias. Segundo a procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, presidente da comissão, o trabalho de comparação com este material disponível está 80% concluído. As checagens são constantes e, ao comparar os DNAs de uma ossada de Perus e da família Casemiro, houve similaridade próxima de 100% entre eles.
Em um muro do Cemitério de Perus se lê: Aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos’. Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil/Uso autorizado
“A sorte é que tinha um processo correndo [sobre o caso], com juiz e procuradora acompanhando. O Ministério de Direitos Humanos concordou em fazer essa exumação (da ossada enterrada como Dênis em Votuporanga)”, contou Eugênia à Agência Pública. O processo ocorreu com a anuência da família dele.
A ossada de Dênis foi exumada porque, na identificação realizada em 1991, ainda não existiam exames de DNA disponíveis às autoridades brasileiras da época. Uma foto sua foi sobreposta sobre o crânio encontrado na época. Seu irmão, Dimas Casemiro, que também foi assassinado pela ditadura um mês antes, em abril de 1971, estava enterrado no mesmo cemitério em Votuporanga. A identificação de Dimas ocorreu em 2018, quando os exames de DNA já estavam disponíveis.
Agora, a ossada até então atribuída a Dênis foi comparada ao DNA da família Casemiro, o que levou à conclusão de que os restos mortais sepultados em 1991 não eram dele.
A nova e correta identificação de Dênis Casemiro e a identificação do marinheiro Grenaldo de Jesus da Silva, assassinado aos 31 anos, em 1972, ao sequestrar um avião no aeroporto de Congonhas para tentar fugir do país, são as primeiras concluídas com resultado positivo em restos mortais de vítimas enterradas na Vala de Perus desde 2018.
Com a identificação de Dênis e Grenaldo, já são seis os militantes políticos reconhecidos cujos restos mortais foram depositados de forma irregular na Vala de Perus. O anúncio oficial, realizado no dia 16 de abril, ocorre três semanas após o Estado Brasileiro ter pedido desculpas pela negligência com as identificações das ossadas encontradas no local.
Para Edson Teles, porém, o erro na identificação do corpo que se supunha ser de Dênis, em 1991, não é fruto de negligência, mas de limitação técnica. “Hoje temos acesso ao uso da comparação genética entre o DNA de familiares e o DNA do material esqueletizado, e isso permite então darmos com mais certeza o resultado final, o que possibilitou a revisão dos resultados”, afirmou o coordenador do CAAF à Pública.
Segundo a presidente da CEMDP, as famílias de Dênis e Grenaldo já foram informadas sobre as identificações. Os restos mortais sepultados como se fossem de Dênis em Votuporanga integram o acervo do projeto Perus e até agora não batem com as amostras de DNA de familiares de desaparecidos disponíveis atualmente no banco genético.
Laudos falsos e enterros em Perus
Tanto Dênis Casemiro, como Grenaldo de Jesus da Silva foram mortos por agentes de Estado, tiveram os laudos falsificados no IML e foram enterrados como indigentes em Perus, apesar de os responsáveis por suas mortes saberem a identidade de ambos.
Segundo a CEMDP e a Comissão Nacional da Verdade, Dênis foi preso em abril de 1971 por uma equipe do DOPS. Torturado por um mês nas masmorras da delegacia, em São Paulo, não sobreviveu às violências sofridas.
Documentos do DOPS indicam que Casemiro foi baleado ao tentar fugir da prisão e encontrado hospitalizado em Ubatuba, no litoral de São Paulo, no dia seguinte. Levado pelos agentes para o Hospital das Clínicas, teria morrido no caminho. O laudo do IML corroborou essa versão, mas ignorou diversas marcas de tortura no corpo da vítima.
Grenaldo de Jesus Silva ingressou na Marinha em 1960, aos 18 anos, e tomou parte da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), que lutava por melhores soldos para marinheiros, soldados e cabos da força. O movimento foi declarado ilegal logo após o golpe de 1964 e Silva foi um dos 414 marinheiros presos. Ele conseguiu fugir da cadeia e passou a viver na clandestinidade em São Paulo.
Em 30 de maio de 1972, Grenaldo afirmou à esposa que não se sentia seguro na condição de clandestino, escreveu uma carta revelando sua condição e tomou a atitude extrema de sequestrar um avião da Varig no aeroporto de Congonhas. O avião foi cercado por policiais que passaram a negociar a situação, Grenaldo liberou os passageiros e, segundo a versão oficial, ao perceber que não conseguiria fugir se matou com um tiro na cabeça.
Laudos mantiveram essa versão até 2003, quando uma reportagem da revista Época localizou o controlador de vôo de serviço no dia do sequestro e um mecânico da Varig que estava no avião. O controlador afirma que Grenaldo levava na camisa uma carta dizendo que queria ir para o Uruguai, pois não conseguia trabalhar devido à falta de documentos e que, depois, mandaria buscar a mulher e o filho.
O mecânico de vôo por sua vez disse que foi forçado a endossar a versão de suicídio e que o tiro sofrido pelo marinheiro havia sido na nuca.