“A luta pela dignidade das mulheres e igualdade de gênero passa pela criação de uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas.” A conclusão é da advogada Luciane Mezarobba, que atua em Curitiba e atualmente atende exclusivamente mulheres.
Dois casos de violência contra a mulher, na capital paulista, tiveram grande repercussão na última semana. No sábado (29), uma mulher de 31 anos teve as pernas severamente mutiladas após ser atropelada e arrastada, por cerca de um quilômetro, enquanto ainda estava presa embaixo do veículo. Na segunda-feira (1º), um homem atirou, usando duas armas, contra sua ex-companheira na pastelaria em que ela trabalhava.
O delegado da Polícia Civil de São Paulo Fernando Barbosa Bossa, responsável pela investigação que levou à prisão do autor do atropelamento, classificou a ocorrência como tentativa de feminicídio, sem possibilidade de defesa da vítima e com requintes de crueldade. Neste caso, a vítima teve as pernas amputadas devido à gravidade das lesões e segue internada em um hospital da cidade.
Para a advogada, é preciso atacar o problema em duas frentes: nas políticas públicas e na cena privada. “O maior exemplo vem do poder público, em primeiro lugar, pelo reconhecimento da existência de desigualdades estruturais e profundas entre os gêneros, passando pela construção coletiva de políticas públicas que ataquem estas desigualdades, de políticas afirmativas e antidiscriminatórias da posição da mulher na sociedade”, disse.
Entre as políticas que acolhem demandas básicas que acabam recaindo sobre as mulheres, ela citou a construção de creches e escolas em período integral, que possibilitem às mulheres trabalhar enquanto seus filhos estão seguros.
“No âmbito do Poder Judiciário, a implementação, pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero tem se mostrado ferramenta valiosa para os operadores do Direito, preocupados com a superação dessa trágica realidade”, lembrou Mezarobba.
O objetivo do protocolo é orientar o Judiciário a considerar o papel das desigualdades estruturais nos julgamentos de conflitos que envolvam mulheres.
Para a advogada, o problema não é a ausência de leis sobre a questão. O crime de feminicídio, por exemplo, tem pena de 20 a 40 anos de reclusão. Nem a possibilidade de permanecer 40 anos encarcerado vem inibindo os homens de assassinar suas companheiras, parceiras e namoradas, disse.
“É preciso, sim, que o Estado viabilize a justa punição aos homens agressores de mulheres. Isso passa pelo enfrentamento às redes de ódio e misoginia que pululam nas redes sociais, não raro sob o discurso de ‘liberdade de expressão’ e sob anonimato.”
A situação, diz a advogada, precisa ser encarada, enfrentada e punida com o rigor da lei.
Em relação à esfera privada, Mezarobba aponta a importância da educação emancipatória e não machista. “Uma educação que não perpetue os estereótipos de gênero, de divisão sexual das tarefas domésticas, construindo espaços de igualdade de direitos e deveres entre os filhos, a mãe e o pai”, disse.
“Mensagens profundas que nos são incutidas desde a infância, de que o espaço privado, do lar, é para as mulheres, e os espaços públicos e de poder são para os homens, devem sim ser combatidas no seio das famílias”, acrescentou a advogada.
Histórico de desigualdade
Psicóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (Unb), Maisa Guimarães explica que, historicamente, a desigualdade entre homens e mulheres foi validada socialmente e formalmente pelas legislações e pelas instituições, o que se reflete hoje ainda em uma cultura de muito privilégio concedido aos homens e de muitas opressões sobre as mulheres.
“Quando a gente fala dessa desigualdade de poder, não é só na dimensão da cultura, de como as pessoas se relacionam por um senso comum. A gente também está falando de uma cultura institucional, uma história política, legislativa, que por séculos no Brasil concedeu direitos a homens e negou direitos às mulheres”, disse.
A pesquisadora lembra que a ideia da igualdade de poder e direitos iguais entre homens e mulheres é uma postura política muito recente na história brasileira. “Só a partir do Estatuto da Mulher Casada, que é do final da década de 60, que se entendeu que uma mulher casada era civilmente capaz de exercer direitos básicos como escolher o [próprio] trabalho”, mencionou.
O atual cenário de violência contra a mulher no país remonta ainda a uma tradição patriarcal, que impõe hierarquias estruturais, mantendo as mulheres em uma situação de subordinação aos homens, conforme apontou Luciane Mezarobba. Além disso, quando o agressor é alguém próximo, as pessoas no entorno, e a própria vítima, ignoram os riscos.
Mezarobba explica que existem diversas formas de violência doméstica e familiar, e quase nunca o agressor começa pela mais gravosa. A Lei Maria da Penha indica as seguintes formas de agressão: a violência física; a violência psicológica; a violência sexual; a violência patrimonial; e a violência moral.
“As agressões tendem a escalar, a partir da certeza da impunidade e da visão, infelizmente ainda socialmente aceita, de que ‘em briga de mulher, ninguém mete a colher’ ou de que o homem tem poderes conferidos pelo patriarcado sobre o corpo e vida da mulher”, disse a advogada.
Recorde de feminicídio em SP
Dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) revelam que entre janeiro e outubro de 2025 foram registrados 53 casos de feminicídio na capital paulista. Este é o maior índice anual desde 2018 (início da série histórica), mesmo sem contabilizar ainda os dados de novembro e dezembro.
Desde janeiro deste ano, 207 mulheres foram mortas em todo o estado de São Paulo, vítimas de feminicídio. Apenas em outubro, foram 22 vítimas desse tipo de crime e outras 5.838 mulheres que sofreram lesão corporal dolosa.
Feminicídio é o homicídio de uma mulher cometido em razão do seu gênero, caracterizado por violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação contra a condição feminina. É considerado a expressão máxima da violência de gênero e ocorre frequentemente como desfecho de um histórico de agressões, podendo ser motivado por ódio, inferiorização ou sentimento de posse sobre a vítima. No Brasil, é considerado um crime hediondo e, quando tipificado como qualificador do homicídio, a pena é de reclusão de 12 a 30 anos.
Em relação aos dados sobre feminicídio, a pesquisadora Maisa Guimarães avalia que há um esforço político atualmente para minimizar a subnotificação dos casos e para a aplicação de protocolos de investigação sobre mortes violentas de mulheres, considerando o feminicídio como a primeira opção a ser investigada.
“Essas políticas públicas proporcionam maior visualização e visibilização da problemática, que antes existia, mas era subnotificada.”
Ela acrescenta, no entanto, que um aumento dos casos de agressão e dos feminicídios também reflete um agravamento das violências que as mulheres têm sofrido. Um dos fatores é a forma como os homens têm resistido e recusado a ampliação dos direitos das mulheres, como, por exemplo, o direito de escolher com quem elas querem se relacionar.
“Não é só que [o homem agressor] não aceita se separar, ele não aceita que [a mulher] tenha decisão sobre a vida dela própria. É uma recusa à alteridade, ao direito das mulheres fazerem escolhas e viverem a própria vida como elas gostariam. É uma recusa masculina de sair desse lugar de exigência e de dominação sobre o que acham que as mulheres deveriam fazer, desejar, escolher”, afirmou a pesquisadora.







