Erika Hilton e Duda Salabert, deputadas federais do Brasil eleitas em 2023. Imagem: colagem do Global Voices com fotos de Kayo Magalhães e Bruno Spada, do Banco de Imagens da Câmara dos Deputados.
No dia 15 de abril de 2025, a deputada federal brasileira Erika Hilton denunciou que, ao pedir um novo visto estadunidense, foi classificada como uma pessoa do ”sexo masculino”. Situação inédita para ela já que, em 2023, em outro visto expedido também pelos Estados Unidos, a deputada teve sua identidade de gênero reconhecida como uma pessoa do sexo feminino.
Após o episódio, a parlamentar brasileira disse que irá acionar o atual presidente Donald Trump na Organização das Nações Unidas (ONU) por transfobia, além de buscar canais dentro da Câmara dos Deputados, no Congresso Nacional, para denunciar o episódio como ”uma barbárie, um ataque aos direitos humanos”. Em uma publicação no Twitter (agora X), ela afirmou:
O que me preocupa é um país estar ignorando documentos oficiais acerca da existência dos próprios cidadãos, e alterando-os conforme a narrativa e os desejos de retirada de direitos do Presidente da vez.
O motivo do pedido de visto para os EUA era sua participação na 11ª edição da Brazil Conference, um evento realizado todos os anos na Universidade de Harvard e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), em Boston, por estudantes brasileiros.
Em outra publicação nas redes sociais, a parlamentar disse que não se surpreendeu com a classificação por estar acompanhando as novas políticas anti-identidade de gênero do governo Trump, mas que “no Brasil, [essa] é uma agenda política de ódio que já derrotamos uma vez”. No início do ano, a atriz estadunidense Hunter Schaefer, também uma mulher trans e conhecida pela série de TV Euphoria, enfrentou a mesma questão ao ter seu passaporte estadunidense emitido com gênero masculino.
Aos 32 anos, Erika Hilton se identifica como mulher trans e travesti (identidade de gênero usada mais comumente na América Latina). Ela tem todos os documentos brasileiros retificados de acordo com sua identidade e, portanto, é reconhecida como mulher perante a lei brasileira. Em entrevista ao canal de TV Globonews, ela disse:
É uma transfobia de Estado e, mais do que isso, um incidente diplomático, quando o governo americano acha que está autorizado a violar os meus direitos enquanto cidadã brasileira. O meu registro civil me reconhece enquanto mulher, os meus documentos me reconhecem enquanto mulher.
Após o caso de Hilton vir a público, Duda Salabert — outra deputada federal brasileira e também mulher trans — contou estar enfrentando situação semelhante. Convidada para um curso em Harvard, ela disse que foi informada pelo governo dos EUA que seu novo visto a identificará como uma pessoa do sexo masculino.
Nas redes sociais, Salabert disse que tentou resolver a questão por vias diplomáticas e que chegou a enviar sua certidão de nascimento, onde consta o gênero feminino:
Essa situação é mais do que transfobia: é um desrespeito à soberania do Brasil e aos direitos humanos mais básicos […] não cabe ao governo dos EUA discordar e refutar os documentos do Brasil.
Pioneiras
Hilton e Salabert fizeram história ao serem as duas primeiras mulheres transgênero a ocupar cadeiras no Congresso Nacional do Brasil. Em 2023, as duas foram incluídas na lista de 100 líderes influentes da revista Time.
Erika Hilton e Duda Salabert. Foto: colagem do Global Voices com capas divulgadas pela revista Time.
Eleita deputada federal pelo estado de São Paulo com mais de 250 mil votos em 2022, Hilton iniciou sua carreira na política como vereadora da capital paulista, uma das maiores metrópoles da América Latina. Na época, em 2020, esteve entre as mais votadas do país. Pedagoga de profissão, ela atua em pautas que têm como foco a preservação dos direitos humanos, o combate à fome, a defesa da saúde pública e a garantia de cidadania à população negra e LGBTQIA+.
Salabert também começou como vereadora em 2020, eleita na cidade de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, com mais de 30 mil votos: um dos recordes de votação local. Dois anos depois, ela voltou a ser uma das mais votadas do seu estado, que tem cerca de 20 milhões de habitantes, e se tornou deputada federal. Entre seus focos de atuação estão a questão ambiental — ela não imprime material de campanha eleitoral para evitar lixo — e educação. Salabert é professora de literatura.
‘Loucura transgênero’
Desde que entraram na política, as duas parlamentares trans dividem ainda outro ponto em comum: se tornaram alvo de ataque de políticos alinhados com a direita. Salabert foi chamada de ”homem” por um colega vereador, hoje deputado e condenado por transfobia pelo episódio. Já Hilton foi chamada de ”ex-cidadão que agora se diz cidadã” por um deputado, que também foi processado por transfobia.
Discursos que parecem ecoar o que se vê nos Estados Unidos, tanto na agenda do atual presidente quanto na de seus aliados. Nas redes, as deputadas têm enfrentado ataques da população brasileira mais à direita, que apoia a medida do governo norte-americano.
Desde o início de seu segundo mandato, Donald Trump adotou uma política anti-gênero contra a comunidade LGBTQ+ norte-americana e, já nos primeiros dias de governo, garantiu uma trava ao que chamou de “loucura transgênero”, aplicando medidas como o fechamento dos programas de diversidade do governo federal e a suspensão da emissão de passaportes usando a letra X para pessoas não-binárias.
De acordo com Trump, a nova política dos Estados Unidos reconhece ”que existem apenas dois gêneros, masculino e feminino”. A ordem assinada por ele no primeiro dia de governo diz que gêneros são imutáveis, por se basearem em uma “realidade fundamental e incontestável”.
Em meio às ações anti-trans de Donald Trump, representantes de organizações como a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) têm se posicionado e defendido a população trans. Joshua Block, conselheiro sênior do Projeto LGBT e HIV da ACLU, afirmou que o presidente “está determinado a usar todos os níveis de governo para expulsar pessoas transgênero da vida pública”.
Por se tratar de uma missão oficial de Erika Hilton, a solicitação da Câmara brasileira foi feita diretamente à embaixada dos Estados Unidos. De acordo com a equipe da parlamentar, o trâmite foi difícil desde o início, e teriam recebido a orientação de solicitar um visto de turista. Posteriormente, o status oficial da viagem foi reconhecido e Hilton foi aceita, mas com o gênero masculino no documento.
Batalha diplomática
Ainda ao canal de TV Globonews, Hilton afirmou que o caso será levado à Organização das Nações Unidas e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Em nota enviada à Agência Brasil, a embaixada dos Estados Unidos em Brasília afirmou que “os registros de visto são confidenciais conforme a lei americana” e que “é política dos EUA reconhecer dois sexos, masculino e feminino, considerados imutáveis desde o nascimento.”
Hilton encontrou o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, no dia 23 de abril para tratar a questão. Em uma publicação no Instagram, ela disse que espera que o governo cobre explicações à embaixada dos EUA. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o fará.
No X, a deputada já pontuou sobre sua motivação de buscar explicações:
Porque isso não vai parar em nós ou atingir apenas as pessoas trans, a lista de alvos dessa gente é imensa. Ela já estava sendo escrita quando o primeiro escravizado foi liberto, quando a primeira mulher votou, quando os trabalhadores exigiram o primeiro aumento de salário, quando os indígenas reivindicaram o direito ao próprio território, quando um latino tentou ter de volta um pouco do que lhe foi roubado.