Para quem caminhou por ela, a COP30, Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (Organização das Nações Unidas), realizada em 2025 em Belém, no estado do Pará, em meio a Amazônia brasileira, foi marcada pela presença forte da sociedade civil organizada nos espaços oficiais, nos eventos paralelos e nas ruas.
Depois de várias conferências com restrições e tensões entre governos e movimentos sociais, a edição brasileira abriu espaço para que organizações de base, coletivos urbanos, povos indígenas, quilombolas (descendentes de pessoas escravizadas organizados em comunidades tradicionais) e ribeirinhos (comunidades tradicionais de beira de rio) ocupassem a cidade com suas agendas.
A escolha do Brasil como sede pode ter favorecido esse ambiente, num momento de maior valorização institucional da participação de grupos sociais. Além disso, Belém impõe um ritmo singular, já que é impossível estar aqui sem perceber a presença de comunidades que historicamente carregam o impacto direto das políticas ambientais, e agora se sentem legitimadas para falar em primeira pessoa.
Belém é uma capital amazônica com 1,3 milhão de habitantes, localizada na foz do rio Guamá, próxima ao encontro com o rio Amazonas, um dos maiores do mundo. A navegação marca a vida cotidiana, conectando comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas à cidade. Essa diversidade aparece na culinária, nos mercados públicos, nas línguas e nos sons, e ajuda a explicar a força dos territórios na COP deste ano.
A Cúpula dos Povos teve um papel central nesse processo. Ela funcionou como um espaço político para articular posicionamentos, construir consensos e demandas que muitas vezes não entram nas negociações formais, conduzido por movimentos sociais, coletivos urbanos, comunidades nativas e locais que trabalham com justiça climática e territorial.
No encerramento, representantes entregaram uma carta com as principais reivindicações dos movimentos, com a presença de representantes oficiais da COP e do governo brasileiro.
O contraste com as últimas COPs é claro. Em Glasgow, Escócia, em 2021, a participação da sociedade civil do Sul Global foi limitada por custos, quarentenas e atrasos nos vistos. No ano seguinte, em Sharm el-Sheikh, Egito, as restrições impostas pelo governo praticamente impediram protestos. Em 2023, em Dubai, Emirados Árabes, a presença dominante do setor fóssil reduziu o espaço político dos movimentos. E, no ano passado, em Baku, Azerbaijão, apesar de avanços no debate sobre financiamento, a participação da sociedade civil teve pouca visibilidade.
Em Belém, a sensação foi de reaproximação com as ruas e com a própria ideia de que a conferência vai além das negociações entre governos.
“As demandas apareceram de forma articulada, mostrando que a sociedade está observando e criando soluções concretas”, comentou Rafael Murta Reis, diretor da Ashoka Brasil, organização social global da qual também faço parte.
Vozes indígenas
A participação indígena, visível e estruturada, também foi destaque. Uma dessas vozes veio pelo rio: a Flotilha Yaku Mama, composta por mais de 60 lideranças indígenas (brasileiras e internacionais) e ativistas, percorreu 3.000 quilômetros durante cerca de um mês, desde o Equador, Peru e Colômbia até Belém. Feita em barcos e canoas, a viagem adicionou uma camada simbólica ao debate climático em relação aos rios e territórios.
Segundo a organização da COP, mais de 900 indígenas foram credenciados para a zona oficial das negociações, um salto expressivo em relação ao recorde anterior, que era de pouco mais de 300. O texto final da conferência trouxe um marco político importante: reconheceu que os direitos territoriais indígenas fazem parte da estratégia climática, demanda antiga dos movimentos.
Painel Programa Kuntari Katu, Zona Verde COP 30. Foto: Isabela Carvalho/Usada com permissão
“O Brasil vive uma nova diplomacia dos povos indígenas”, comentou Lucas Marubo, do povo Marubo, da região de fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, durante painel na Zona Verde da COP30. “Saímos da COP30 com a mesma certeza com que entramos: qualquer mecanismo, fundo ou acordo só tem legitimidade se estiver ancorado na soberania territorial dos povos indígenas. Nossa vigilância continua, porque não lutamos por lucro, lutamos pela vida”, disse ele, que fez parte do Programa Kuntari Katu, iniciativa do governo brasileiro que prepara lideranças indígenas para conferências internacionais.
“A principais urgências são garantir nossos territórios como fundamento da adaptação, fortalecer a soberania alimentar e o cuidado com os nossos rios, apoiar as infraestruturas comunitárias pensadas para o enfrentamento desses tempos, fortalecer os planos de adaptação criado por nós, e reconhecer que saúde, conhecimento tradicional e bem-viver também são políticas de adaptação. Tudo isso já está sendo feito pelos nossos povos, com muito pouco”, afirma Josimara Baré, do povo Baré, que vive no Rio Negro, na fronteira entre Brasil e Venezuela, também integrante do Kuntari Katu.
O tom na Marcha e nas mesas
A Marcha Global Pelo Clima, logo nos primeiros dias de COP, foi o momento mais visível dessa retomada de presença cidadã. Cerca de 70 mil pessoas caminharam pelas ruas de Belém, reunindo pautas diversas de justiça climática, territorial, racial e econômica.
Ao longo da caminhada, era possível ver faixas pela proteção do Cerrado e da Amazônia (biomas brasileiros), pela demarcação de terras, contra o garimpo, em defesa dos direitos das mulheres e crianças negras e indígenas, pela responsabilização de grandes empresas, pela reforma agrária, pelo fim dos combustíveis fósseis (ligados a principal causa do aquecimento global e das mudanças climáticas) e contra investimento em guerras. A Cúpula dos Povos, cujo manifesto foi assinado por mais de 1.000 organizações de todo o mundo, ajudou a organizar essas vozes.
O lançamento do Tropical Forests Forever Facility (TFFF) foi apresentado como um anúncio ambicioso da COP30 — um fundo que pretende criar um fluxo permanente de recursos para a conservação das florestas tropicais, com adesão de mais de 50 países. A ideia é que países com florestas tropicais que as mantiverem “em pé” receberão pagamentos por hectare protegido ou restaurado.
Marcha Global- 15 de novembro reuniu movimentos sociais. Foto: Isabela Carvalho/Usada com permissão
As lideranças indígenas receberam o anúncio como um reconhecimento da importância das florestas, mas com cautela. O entusiasmo se misturou a uma cobrança antiga: que esses recursos cheguem de forma direta, simples e compatível com a governança dos próprios povos. A crítica à intermediação de grandes fundos e à burocracia, que dificulta o acesso das comunidades, apareceu ao longo da conferência.
Outro ponto, o roteiro global para eliminação dos combustíveis fósseis, uma das discussões mais aguardadas da COP, não avançou como esperado por divergências entre governos. Em resposta, o Brasil anunciou que seguirá desenvolvendo um documento próprio, junto com o Mecanismo de Ação de Belém (BAM, Belem Action Mechanism), voltado a orientar uma transição justa para economias de baixo carbono sem deixar para trás trabalhadores e comunidades locais.
Entre vitórias e frustrações, a leitura foi de que a COP30 teve uma presença forte de atores de territórios, e não apenas de escritórios. O termo “mudança sistêmica” apareceu muitas vezes para defender um novo paradigma em que desenvolvimento e natureza não são tratados como campos separados. A mensagem que atravessou a conferência foi que não existe desenvolvimento real sem que a natureza seja parte chave das decisões.
Os debates sobre combustíveis fósseis, mitigação, adaptação e financiamento ficaram longe do que muitas lideranças esperavam, e isso deixou frustrações claras. Mesmo assim, vale olhar o processo como um todo. Vozes que antes quase não apareciam ocuparam salas, influenciaram conversas e assumiram um lugar concreto no andamento da conferência. Isso não resolve os impasses, mas amplia o horizonte de quem participa e de quem observa.







