O assassinato de Sana Yousaf, criadora digital de 17 anos, em Islamabade, no dia 02 de junho, me deixou devastada. Como muitas mulheres paquistanesas ao redor do mundo, tenho lutado para respirar sob o peso dessa perda. Porque isso não se trata apenas de Sana. Trata-se de cada mulher que alguma vez já ouviu que sua vida importa menos, que sua voz é forte demais, que sua liberdade é perigosa demais.
Sana Yousaf, uma menina vibrante de Chitral, na província de Caiber Paquetuncuá no Paquistão, chegou a alcançar supostamente por um homem que lhe havia assediado e perseguido durante meses. Não podia aceitar sua rejeição. Assim que, como muitos antes dele fizeram, a silenciou.
O que talvez seja ainda mais aterrorizante do que o assassinato em si é o que veio depois: as publicações, os vídeos, os comentários. Muitos insinuavam que ela mesma causou isso; que sua visibilidade, sua forma de se expressar, sua “atitude desafiadora” justificavam sua morte. Isso não é um pensamento criminoso. É uma ideia dominante, espalhada em grupos de WhatsApp, repetida por influenciadores, disfarçada de discurso moral e religioso. Revela quão profundamente o patriarcado está enraizado em nossa sociedade, em que homens são ensinados que têm direito ao silêncio, ao corpo e à obediência de uma mulher, e em que uma mulher que se atreve a ocupar um espaço se torna uma ameaça.
Enquanto não combatermos essa mentalidade em nossos lares, em nossas escolas, em nossas redes, a justiça sempre chegará tarde demais, isso se chegar.
Porque isso não é novo. E não é um fato isolado.
Em 2016, Qandeel Baloch, estrela paquistanesa das redes sociais e conhecida por desafiar as normas patriarcais, foi estrangulada por seu irmão pela mesma razão: visibilidade, ousadia, desafio. Segundo a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, em 2021 foram denunciados mais de 470 casos de assassinatos por honra. Mas defensores dos direitos humanos estimam que o número real se aproxima de mil casos anuais. Nestes crimes, a vítima é vista como alguém que trouxe “vergonha” para a família, e sua morte é considerada uma forma de restaurar essa suposta honra.
Nesse mesmo ano, Saman Abbas, uma jovem ítalo-paquistanesa de 18 anos, foi assassinada por sua família na Itália depois de se recusar a aceitar um casamento arranjado. Seu corpo foi encontrado quase um ano depois, enterrado em uma cova rasa próxima a uma fazenda abandonada. Em 2024, seus pais foram condenados à prisão perpétua. O caso se tornou um dos exemplos mais famosos na Itália de como o controle sobre os corpos e as vidas das mulheres atravessa fronteiras.
E esse medo ultrapassa classes sociais e privilégios.
Em julho de 2021, Noor Mukadam, mulher de 27 anos de uma família diplomática de Islamabade, foi brutalmente torturada e assassinada por Zahir Jaffer, filho de uma das famílias empresariais mais poderosas do Paquistão. Apesar da posição social de Noor e da evidência assustadora, o julgamento se prolongou durante meses sob intensa pressão pública. Foi necessária uma imensa mobilização cidadã para conseguir a condenação. Muitos ainda temem que a sentença seja revogada na apelação, assim como aconteceu com o assassino de Qandeel Baloch, que com o tempo acabou sendo liberado.
E esses são só os casos que conhecemos. A maioria não passa de um arquivo policial, se é que chega a ser registrado.
Mas isso não se trata apenas de assassinatos. Se trata do sufoco diário que implica ser mulher no Paquistão. Por que estamos tão ausentes de parques, calçadas e barracas de chá? Não é porque não pertençamos a esses espaços, mas porque nos fazem sentir que não pertencemos.
Em abril de 2025, um incidente viral em Laore deixou esta situação dolorosamente clara. Uma mulher que praticava ioga em um parque público teria sido solicitada a se retirar e mostrar sua identidade, depois de um homem ter se queixado de que seus movimentos eram “inapropriados”. O guarda ficou do lado do homem. Naquele momento, uma mulher se espreguiçando sob o sol da manhã, foi considerada uma ameaça. A história gerou um breve debate, porém muitas de nós já conhecíamos a mensagem velha e desgastante: até o silêncio pode ser demais se é mulher no Paquistão.
Eu cresci lá. Sei o que significa atravessar uma rua com o coração acelerado. Ter dez anos e aprender a se encolher. Que dizer de seu corpo, sua roupa, sua risada, seu nome na porta poderia trazer vergonha. Carrego esse medo nos ossos, inclusive agora, depois de décadas.
Em 2025, os ataques com ácido continuam: mais de 200 por ano, em sua maioria contra mulheres. Dizer “não” a uma proposta, pedir o divórcio, ou simplesmente ser suspeita de “desonrar” a família, pode significar ficar marcada por toda uma vida. A mensagem é clara e contundente: a vida de uma mulher só vale se for invisível, obediente e silenciosa.
Para muitas de nós, em Laore, Londres ou Nova Iorque, esses assassinatos já não surpreendem. São devastadores. Mas não são novidade. E essa é a verdadeira tragédia.
Não podemos normalizar isso. Não podemos acender velas e seguir em frente.
A morte de Sana gerou protestos e hastags #JusticeForSanaYousaf (Justiça para Sana Yousaf) e #StopHonourKillings (Parem Assassinatos por Honra), porém a justiça precisa ir além disso. Nunca deveria ter sido necessário que seu pai pedisse às autoridades por justiça. A crueldade de sua morte, o silêncio dos que tem o poder e o fato de que muitos previram isso e não fizeram nada tornam impossível seguir como se não fosse nada.
Escrevo isso não somente como defensora da liberdade de imprensa ou jornalista. Escrevo como mulher paquistanesa. Como alguém que ainda acorda noites suando, lembrando a sensação de caminhar com medo para casa. Escrevo como alguém que acredita que meninas como Sana merecem o mundo, não um túmulo.
Que Sana Yousaf seja lembrada não somente por como morreu, mas por como viveu. Pelo que se atreveu a fazer: ocupar um espaço. Dizer sua verdade. Dançar. Ser.
Que essa seja nossa revolução.