Al Sharif era líder de uma célula do Hamas e ”era responsável por lançar ataques de foguetes contra civis israelenses e tropas da IDF (Forças de Defesa de Israel),” militares israelenses disseram em um comunicado, citando serviços de inteligência e documentos encontrados em Gaza como prova.
A Reuters editou o texto da reportagem desde então. Esse print do segundo parágrafo do artigo foi uma das várias partes captadas por usuários do Twitter, e começa como se a Reuters soubesse de fato que Al Sharif era líder de uma célula do Hamas. Perceba que a parte inicial da frase não usa aspas, o que, quando se lida com material enganoso, é algo imperdoável. Na verdade, as palavras “Al Sharif era líder de uma célula do Hamas” vem quase que citadas diretamente de um tuíte da IDF; não deixá-las entre aspas é uma negligência jornalística.
Também é imperdoável para jornalistas não apontar uma mentira quando alguém lhes empurra uma. Ninguém entre as grandes publicações da imprensa ocidental levantou ao menos um grama de ceticismo à campanha incansável de Israel de pintar todos os jornalistas assassinados por eles como membros do Hamas, apesar de, a essa altura, termos mais trabalhadores de imprensa mortos em Gaza do que nas duas grandes Guerras Mundiais somadas. Esse dado não é do Hamas; é do Watson School of International and Public Affairs, da Universidade de Brown University. Nos Estados Unidos.
Captura de tela do site Custos de guerra da Watson School of International and Public Affairs, da Brown University. Uso liberado.
Parte da razão pela qual BBC, New York Times e outros veículos não terem gritado em protesto a essas mortes é porque eles conseguem se safar por uma tecnicalidade. Eles não foram autorizados a entrar em Gaza para fazer reportagens, então não conseguem
“checar de forma independente” se estes jornalistas dizimados eram mesmo membros do Hamas. (Essa é, obviamente, a razão porque Israel não permite repórteres em Gaza.) Mas a verdade também é que a linha de cor (um termo da segregação racial nos EUA) segue bem viva no jornalismo ocidental — em todos estes veículos que se creem corretos e falam sobre a Primeira Emenda, liberdade de imprensa e a importância do quinto estado.
Após o Holocausto e com a fundação de Israel, o Ocidente trouxe para o grupo branco pessoas que não eram consideradas brancas de forma alguma: judeus. (Neste livro, o rabino norte-americano Michael Lerner diz que os judeus foram, no passado, “o principal ‘outro,’ discriminados social e legalmente, alvo de racismo e genocídio, e nestes termos, judeus não são brancos.” Ao que o acadêmico negro Cornel West argumenta que os judeus adquiriram com o passar do tempo “o privilégio da pele branca.” Algumas dessas dinâmicas históricas eu aprendi em conversas com amigos e colegas, como o formidável Pankaj Mishra.)
O conflito entre Israel e a Palestina deveria ser visto mais seguido como um conflito entre (recém consideradas) pessoas brancas e (desde sempre e para sempre) pessoas pardas, de cor. Quando esse é o recorte é fácil perceber porque o Ocidente apoia Israel de forma acrítica todas as vezes, mesmo quando Israel burla os princípios que o Ocidente encampa todo tempo. Como liberdade de imprensa.
Assim como a matança de pessoas pardas e negras não importa muito para governos ocidentais, os assassinatos que têm como alvos jornalistas pardos e negros também não importam para publicações ocidentais.
Em todo caso, para a maioria dos editores em Londres e Nova York, esses jornalistas são apenas bons o bastante para ficarem em sua área e cobrirem seus próprios quintais — ou serem encolhidos ao status de “fixer” quando há algum correspondente estrangeiro pronto para cair de paraquedas por lá.
Na morte, um jornalista pardo só será homenageado por ocidentais se ele trabalhar para uma publicação ocidental ou se sua morte puder ser usada politicamente. Jamal Khashoggi, o autor do Washington Post esquartejado pela Arábia Saudita dentro da sua embaixada em Istambul, em 2018, preenchia esses dois critérios. Anas al-Sharif, um homem pardo, reportando em árabe, para um veículo árabe durante um ataque de Israel, não preenchia nenhum.