Sagat B, rapper e ex-preso, hoje membro da Academia Brasileira de Letras do Cárcere. Foto: Marcelo Costa Braga/Utilizada com permissão
Este artigo escrito por Rafael Ciscati foi publicado originalmente no site da Brasil de Direitos, em 03 de julho de 2025. Uma versão editada é republicada aqui pelo Global Voices sob um acordo de parceria.
Era começo dos anos 2010 e Sagat B cumpria pena no Instituto Penal Vicente Piragibe, na cidade do Rio de Janeiro, quando entrou em um projeto de incentivo à leitura e escrita dentro da prisão.
A ação era desenvolvida por uma organização não-governamental e incluía atividades como aulas de música e uma espécie de clube de leitura, em uma turma de apenas sete presos. Sagat, que até ali nunca terminara de ler um livro na vida, se interessou pela proposta. Ao cabo de uma semana, devorou seu primeiro volume: O Alienista (1882), do escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908).
Hoje, em liberdade, ele tem seu próprio livro de memórias publicado. Em ‘‘O Bandido que virou artista’’ (2022), Sagat B rememora a vida e é peremptório: não fosse o incentivo à escrita, que recebeu no cárcere, sua trajetória seria outra. “A literatura foi essencial para a minha ressocialização”, diz ele.
Por isso, ele acompanha com preocupação o debate que se desenrola no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre se pessoas encarceradas podem publicar obras literárias enquanto cumprem pena.
A ação teve origem em um caso de 2019. Um preso da Penitenciária Federal de Campo Grande, no estado do Mato Grosso do Sul, tentou publicar um livro com mais de mil páginas, escrito enquanto cumpria pena. O diretor da penitenciária não autorizou. Na época, segundo informações apresentadas à justiça pela defesa do preso, o diretor alegou temer que o manuscrito incluísse mensagens cifradas, direcionadas a organizações criminosas. O material foi submetido à análise de uma equipe pedagógica da prisão por três anos.
O caso foi levado à Justiça que, em primeira e segunda instâncias, deu razão ao diretor. Para os desembargadores do Tribunal Regional Federal da Quinta Região, a decisão da penitenciária é respaldada pelo Manual do Sistema Penitenciário Federal – documento que estabelece procedimentos adotados para esses presídios de segurança máxima.
No seu artigo 161, o texto diz que: “Será permitida ao preso a produção literária autoral como escrita de biografia, poemas, contos e outros dessa natureza, desde que autorizada pela Direção da Penitenciária Federal, sendo vedada a saída do material ou sua divulgação”.
Com as primeiras penitenciárias inauguradas em 2006, o sistema penitenciário federal recebe condenados considerados de alta periculosidade, em geral, por causa dos seus vínculos com facções criminosas. O Manual que descreve os procedimentos adotados nesses presídios estabelece uma série de restrições.
“Ele é muito focado na questão da segurança e da disciplina”, diz a advogada Cátia Kim, coordenadora geral de programas do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC).
Publicar ou não publicar
Excetuando-se o que diz o Manual, não há nenhuma lei ou norma no Brasil que impeça uma pessoa que cumpre pena de publicar o que escreve, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. “Parte-se, então, do princípio básico de que, se não há proibição, a prática é permitida”, afirma Kim.
É esse o ponto em discussão na Suprema Corte: os ministros decidirão se essa restrição desrespeita ou não a Constituição Federal. Para a defesa do detento escritor, trata-se de um caso de censura prévia, em que se desrespeitou o direito do autor à liberdade de expressão.
Embora o caso julgado envolva uma pessoa presa no sistema penitenciário federal, a decisão dos ministros deve se estender, também, a quem cumpre pena em presídios comuns, sob administração dos governos estaduais.
As normas que governam o dia-a-dia dos detentos nessas penitenciárias costumam ser definidas pelas secretarias estaduais de administração penitenciária, lembra Kim. “Decisões como essa – sobre autorizar ou não a publicação de um livro – são tomadas num âmbito mais executivo”.
Tão logo soube do imbróglio no STF, Sagat B conta que mandou uma mensagem ao colega Edson Souza Júnior. Advogado e ex-preso, como ele, Souza é um dos integrantes da Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC).
Criada em 2024, a instituição reúne pessoas presas e egressas do sistema prisional que tenham ao menos um livro publicado. Sagat B e Souza, ambos autores publicados, ocupam as cadeiras número dois e 18, respectivamente.
Souza explica que o objetivo da Academia é “defender a produção literária de presos e egressos”. “A literatura é talvez o único instrumento de ressocialização disponível hoje”.
Quando recebeu as mensagens de Sagat B, Souza já tinha se inteirado da ação no STF, e preparava uma petição pedindo a inclusão da ABLC como “amiga da Corte” — ou seja, como uma entidade capaz de fornecer informações importantes para o processo. O pedido está em análise. Se aceita, a ABLC vai defender diante da Suprema Corte o direito de pessoas encarceradas a publicar seus escritos.
A Academia
A ideia de criar a Academia partiu do desembargador aposentado Siro Darlan, que via na literatura um instrumento de transformação. A instituição não tem sede própria, seus membros costumam se encontrar por videoconferência, e participam de eventos sobre literatura, dentro e fora de prisões pelo Brasil.
Como na Academia Brasileira de Letras, os membros da ABLC são eleitos pelos demais integrantes. Depois, eles passam a ocupar cadeiras em homenagem a pessoas célebres que tiveram passagens pelo cárcere, incluindo figuras como o escritor russo Fiódor Dostoiévski, o ex-presidente do Uruguai José ‘‘Pepe’’ Mujica ou a escritora modernista brasileira Patrícia Galvão, a Pagu, membro do Partido Comunista e presa por participar de uma greve em defesa dos estivadores do Porto de Santos. Outro comunista, o escritor Jorge Amado, chegou a ser preso em três ocasiões. É dele a cadeira 8.
O ‘‘imortal’’ a ocupar a cadeira de número 1, que leva o nome do escritor Graciliano Ramos, é Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, um dos líderes do Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Nepomuceno tem quatro livros publicados.
Preso desde 1996, Nepomuceno cumpre pena no sistema federal – desde 2024, ele está no presídio de Campo Grande, o mesmo que negou a publicação ao detento que motivou a discussão na Suprema Corte.
Souza, da ABLC, considera que a diferença entre os dois casos revela o quanto o sistema pode ser arbitrário. “Independentemente do que diga o Manual, na prática, quem decide se a pessoa vai publicar ou não é o diretor do presídio. E ele não precisa justificar a decisão”.
A proibição da publicação também contrasta com uma resolução publicada em 2021 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que incentiva pessoas encarceradas a ler e participar de atividades educativas em troca de redução da pena. Projetos assim ainda são raros: Kim, do ITTC, destaca iniciativas bem-sucedidas em São Paulo e em Florianópolis, além de outros casos pontuais.
“Alguns estados – como São Paulo, Paraná, Espírito Santo e Paraíba – têm realizado concursos literários, promovendo o valor da escrita da população encarcerada”, lembra Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa dos Direitos de Defesa (IDDD). Outros, diz, impedem que os escritos produzidos dentro do cárcere sejam publicados. “Mas, se uma das finalidades mais potentes da escrita é a partilha, qual é o sentido de incentivar esse exercício nessas condições? Escrever é uma forma de existir no mundo. Negar a publicação de um escrito é mais uma maneira de apagamento da existência das pessoas presas”.
Dias destaca que a Lei de Execução Penal garante o direito da pessoa encarcerada à cultura e à educação. Frente a isso, diz ela, não faz sentido tentar controlar que uma pessoa presa possa escrever. “O motivo oficial, de que a proibição visa à manutenção da disciplina e da segurança das penitenciárias, me parece apenas um pretexto para manter a política de sigilo sobre o que acontece dentro das prisões”.
Os membros da Academia Brasileira de Letras do Cárcere defendem que a solução para o impasse consiste em respeitar o direito à liberdade de expressão.
“Afinal, a pena de prisão não tira da pessoa outros direitos fundamentais”, diz Souza. Ele admite que, antes de publicados, os textos possam ser avaliados pelas equipes pedagógicas das penitenciárias. “Mas é preciso que se estabeleça um tempo limite para essa análise e que os advogados do preso tenham acesso a ela”, diz.
Sagat B, por sua vez, sonha mais longe. Ele gostaria de ver uma biblioteca formada apenas por livros escritos por detentos. “Livros que falem da realidade dentro das prisões. Se livros assim existissem, o clube de leitura de Vicente Piragibe não teria só sete participantes. Teria mais de 300”, fala lembrando onde se tornou ele mesmo um leitor.