Foto da bandeira do Uruguai via Canva.
O Uruguai foi o primeiro país da América Latina a conceder o direito de voto às mulheres, além de ter sido pioneiro na aprovação da lei do divórcio e o primeiro a permitir a separação por vontade exclusiva da mulher. No início da década de 2010, o país fez história e ganhou as manchetes ao descriminalizar a maconha, garantir o direito das mulheres ao aborto e legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, temas que ainda eram tabu para a maioria de seus vizinhos. Em 15 de outubro, o Uruguai, com cerca de 3,5 milhões de habitantes, alcançou outro marco histórico: tornou-se o primeiro país latino-americano a aprovar uma lei que autoriza a eutanásia.
O projeto de lei foi aprovado no Senado com 20 votos favoráveis, de um total de 31. Em agosto, já havia passado pela Câmara dos Representantes, com 66 votos a favor de um total de 99. Agora, aguarda a sanção do presidente Yamandú Orsi. A vice-presidente Carolina Cosse, que também preside a Assembleia Geral, parabenizou os parlamentares pela votação.
Felicitaciones a todo el Senado por el trabajo en torno al proyecto de ley de Muerte Digna, cuyo objeto es regular y garantizar el derecho de las personas a transcurrir dignamente el proceso de morir.
Se trata de un hecho histórico, que coloca a Uruguay a la vanguardia en el… pic.twitter.com/TrnwLswtSQ
— Carolina Cosse (@CosseCarolina) October 16, 2025
Parabéns a todo o Senado pelo trabalho em torno do Projeto de Lei da Morte Digna, que busca regular e garantir o direito das pessoas de viver o processo de sua própria morte com dignidade.
É um marco histórico, que coloca o Uruguai na vanguarda da discussão sobre temas profundamente humanos e sensíveis, reafirmando o compromisso com a dignidade, a liberdade e os direitos de todas as pessoas. Que continuemos avançando! pic.twitter.com/TrnwLswtSQ
— Carolina Cosse (@CosseCarolina) 16 de outubro, 2025
O projeto de lei permite o acesso ao procedimento para adultos mentalmente capazes que sofrem de uma ou mais doenças crônicas, incuráveis e irreversíveis, que causem sofrimento e comprometam a qualidade de vida.
O presidente Orsi afirmou que não considera vetar a lei e acrescentou: “São essas questões que sempre temos que estar dispostos a aprofundar e aprimorar, com a dignidade humana acima de tudo”. O jornal La Diaria informou que autoridades do governo disseram que equipes jurídicas e de saúde trabalharão para regulamentar a lei o mais rápido possível, pois já existem pessoas que poderiam se beneficiar dela.
Quando a lei entrar em vigor, o Uruguai será o quarto país na região a descriminalizar a eutanásia, mas o primeiro a fazê-lo por meio de legislação.
A Colômbia descriminalizou a eutanásia em 1997 e a regulamentou em 2015. Tudo começou com o pedido de um paciente terminal à Corte Constitucional para ter acesso à morte assistida, explica a BBC. Em Cuba, o procedimento foi discretamente incorporado ao Sistema Nacional de Saúde em 2023, segundo a Reuters. Em 2024, o Equador também descriminalizou a prática, após uma decisão judicial que estabeleceu um marco legal e regras para casos futuros.
Debate sobre a morte digna
O debate em torno do projeto de lei “Muerte Digna” (Morte Digna) se estendeu por cinco anos. A primeira proposta para descriminalizar a eutanásia foi apresentada em março de 2020 pelo então legislador Ope Pasquet, do Partido Colorado, de centro-direita. Embora tenha sido aprovada pela Câmara dos Representantes em 2022, acabou travada no Senado. Em 2025, após a coalizão de esquerda Frente Ampla (FA) retornar à presidência, uma nova proposta, que reuniu elementos da de 2020 e de outra, de 2021, apresentada por legisladores da FA, foi reintroduzida e levada novamente à votação, segundo o jornal El País.
Pasquet, agora ex-deputado, voltou à Assembleia Geral para votar a favor do projeto, graças a uma cadeira temporariamente cedida por Robert Silva, senador de seu partido. Conforme publicação no Montevideo Portal, ele mencionou casos de pessoas que esperaram pela aprovação da lei durante esse período:
El que crea en la legitimidad moral de la eutanasia y se encuentra en la triste situación de necesitarla, podrá pedirla. Quien la considere incompatible con sus creencias y convicciones, no la pedirá y nadie se la aplicará contra su voluntad. ¡Es libertad para elegir: eso es lo que reclamamos! ¡Que cada cual siga los dictados de su conciencia! El que quiere eutanasia, que la pida, y el que no la quiere, que la rechace. (…)
No va a venir ninguna autoridad a clasificar a los pacientes en “eutanasiables” y “no eutanasiables.” Esta es una falsedad que se ha repetido una y otra vez. La decisión de pedir la eutanasia es absolutamente privativa de la persona de cuya vida se trata. Si está en la situación prevista por la ley, se dará trámite a su pedido, y, si no, no.
Quem acredita na legitimidade moral da eutanásia e se encontra na triste situação de precisar dela poderá solicitá-la. Quem a considerar incompatível com suas crenças e convicções não a pedirá e ninguém a aplicará contra sua vontade. É liberdade de escolha, é isso que defendemos: que cada pessoa siga o que sua consciência dita! Quem quiser a eutanásia, pode solicitá-la; quem não quiser, pode rejeitá-la.
Nenhuma autoridade classificará pacientes como “eutanasiáveis” ou “não eutanasiáveis”. Essa afirmação é falsa e tem sido repetida diversas vezes. A decisão de solicitar a eutanásia é estritamente individual, cabendo apenas à pessoa decidir sobre a própria vida. Se estiver em uma situação prevista pela lei, o pedido seguirá adiante; caso contrário, não.
Entre os 11 senadores que votaram contra, Martin Lema, do Partido Nacional, de centro-direita, afirmou que o projeto de lei apresentava “lacunas, vícios e contradições, além de carecer de garantias clínicas e legais, infringindo aspectos constitucionais”. Já o senador Gustavo Zubia, do Partido Colorado, publicou em sua conta no X (antigo Twitter) que não votou a favor do projeto porque ele não estabelecia controles suficientes.
O Uruguai é um Estado laico, com separação entre Igreja e Estado. Em 1919, uma lei aboliu todas as festas religiosas do calendário oficial. O Natal, por exemplo, é celebrado como o Dia da Família. Ainda assim, representantes da Igreja Católica divulgaram uma nota expressando preocupação de que “a lei possa promover uma cultura da morte”.
O direito de escolher
Em 15 de outubro, quando o Senado aprovou o projeto, Pablo Salgueiro teria completado 62 anos. Ele morreu em 2020, vítima de esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença degenerativa que também afetou outros membros da família. Suas filhas, Florencia e Sofia, estão entre os parentes favoráveis à descriminalização da eutanásia.
Qué regalo de cumpleaños sería saber que nadie más va a sufrir como él, sin la opción de elegir cómo morir.
Espero que mi papá esté viendo esto.
Orgullosa de mi país que avanza en derechos una vez más. 🇺🇾🧡 https://t.co/LB2Yi185uF pic.twitter.com/9H1FyFLqK9— Sofía 🐞 (@sofisall) October 16, 2025
Que presente de aniversário seria saber que ninguém mais precisará sofrer como ele, sem a opção de escolher como morrer. Espero que meu pai esteja vendo isso. Tenho orgulho do meu país, que mais uma vez avança em direitos 🇺🇾🧡 https://t.co/LB2Yi185uF pic.twitter.com/9H1FyFLqK9
— Sofía 🐞 (@sofisall) 16 de outubro, 2025
Em 2021, Florencia publicou uma sequência em seu perfil no X, na qual contou que, embora seu pai estivesse lúcido até os últimos dias, a ELA limitava a capacidade de resposta do corpo. Numa noite de fevereiro, ouviu dele: “Isso não é vida”, “não quero continuar vivendo” e “quero morrer”. Florencia escreveu: “Espero que nenhum de vocês jamais se encontre na situação de ouvir essas palavras, sabendo que são verdadeiras e que não há NADA que possa ser feito”.
Florencia, membro da Empatía Uruguay, um grupo de uruguaios que apoia a legalização da eutanásia, disse ao veículo de notícias Subrayado que se sentiu honrada com a votação, que colocou o país novamente na trilha do pioneirismo:
…y nos posiciona como un país que tiene imaginación y que se atreve a atacar ciertos problemas que en vez de dejarlos en la oscuridad o dejar que sigan pasando clandestinamente, da una respuesta desde el Estado, que es una respuesta liberal y que deja a las personas decidir según sus valores, cómo vivir sus vidas.
…e nos posiciona como um país que tem imaginação e ousa enfrentar certas questões, em vez de deixá-las na obscuridade ou permitir que ocorram de forma velada. Oferece uma resposta liberal do Estado, que permite às pessoas decidir, de acordo com seus valores, como viver suas vidas.
Em uma sequência em que comentou o voto de cada senador, sua publicação final deixou uma pergunta: “Quem somos nós para dizer a um doente quanto sofrimento é suficiente? A hora da votação está se aproximando”.






