De onde veio o vírus SARS-CoV-2? A hipótese da origem natural parece convencer a maioria dos cientistas, mas três agências governamentais dos EUA, incluindo a CIA, apontam para a possibilidade de um vazamento do vírus de um laboratório chinês. Entre a política e a ciência, vamos dar uma olhada mais de perto nesta questão.
Na sexta-feira, 24 de janeiro, o novo diretor da CIA, John Ratcliffe, anunciou ao veículo de comunicação de extrema direita Breitbart News que uma de suas prioridades era detalhar as informações conhecidas pela agência sobre um vazamento de laboratório em Wuhan, China. No dia seguinte, o jornal New York Times revelou que a agência, inicialmente indecisa sobre o assunto, agora está inclinada a endossar um possível vazamento de laboratório, com um “baixo nível de confiança” – o menor em uma escala de três (baixo, médio, alto), o que significa que as informações utilizadas não permitem tirar conclusões definitivas.
Dessa forma, a CIA se junta ao FBI e ao DOE (sigla em inglês para o Departamento de Energia, que tem atribuições científicas) entre os integrantes da comunidade de inteligência dos EUA que se inclinam para a hipótese do vazamento de laboratório.
De acordo com a levantamento publicado em 2023, do restante da comunidade de inteligência dos EUA que está investigando a origem da pandemia de COVID-19, uma outra agência permanece indecisa, enquanto quatro, assim como o Conselho Nacional de Inteligência, estão inclinados a endossar a hipótese de uma origem natural.
O que significa “origem em laboratório”?
Segundo o New York Times, a mudança de avaliação da CIA não se deve à descoberta de novos elementos ou evidências, e simplesmente reflete uma nova interpretação dos fatos já conhecidos. Nem o raciocínio nem mesmo os dados usados para chegar a esta nova conclusão foram tornados públicos. Portanto, é impossível julgar sua validade e solidez.
Acima de tudo, o termo “origem em laboratório” abrange uma série de cenários que, às vezes, são incompatíveis entre si. Por exemplo, de acordo com o New York Times (confirmando informações divulgadas pela CNN em 2023, quando o Departamento de Energia mudou de ideia), o Departamento de Energia favoreceu uma origem ligada às atividades do Wuhan Center for Disease Control (WCDC), enquanto o FBI promove a ideia de uma origem no Wuhan Institute of Virology (WIV). O cenário preferido da CIA ainda não é conhecido.
O WCDC não é estritamente um laboratório de pesquisa, mas alguns de seus membros participaram de trabalhos de campo de amostragem de animais selvagens. O WCDC se mudou para perto do mercado de Huanan – apontado como provável epicentro da pandemia – no final de 2019. Um cenário envolvendo o WCDC endossa o fato de que os primeiros casos detectados estão ligados epidemiologicamente ou geograficamente ao mercado e envolvem um vírus natural.
O WIV é um instituto de pesquisa com dois campi. Um deles fica a 12 km em linha reta do mercado e o outro, que inclui o laboratório NB4 (N.T.: “P4” na notação original em francês, um laboratório de biossegurança máxima, que permite a manipulação de microrganismos perigosos e exóticos), fica a 27 km em linha reta. Os cenários que envolvem o WIV geralmente propõem que alguns dos experimentos lá realizados com coronavírus não revelados, conhecidos como experimentos de ganho de função (durante os quais os vírus podem se tornar mais transmissíveis ou mais virulentos), teriam sido feitos em condições de biossegurança insuficientes (nível 2, muito longe, portanto, do nível NB4).
No mapa interativo acima, que localiza os laboratórios de Wuhan (os dois campi do WIV e o WCDC) e o mercado de Huanan (em vermelho), você pode exibir a legenda clicando no símbolo no canto superior esquerdo. O WCDC fica próximo ao mercado, portanto, aumente o zoom para vê-lo.
O vírus só pode ter uma origem: se ele realmente escapou de um laboratório, não pode ter vindo de dois laboratórios separados, com atividades diferentes, ao mesmo tempo. Duas hipóteses incompatíveis entre si não são dois argumentos a favor de um vazamento de laboratório. Isso sem levar em conta outros cenários, como de um vírus concebido em um laboratório dos EUA e depois enviado para Wuhan.
Além do local, a natureza do vírus também é uma fonte de divergência entre os cenários de acidentes em pesquisas. Um vírus natural contraído durante uma campanha de amostragem? Um vírus cultivado em laboratório, transferido para células ou animais, ou até mesmo um vírus modificado geneticamente de maneira direta? Mais uma vez, o SARS-CoV-2 não pode ser tanto um vírus natural quanto um produto de experimentos. A acumulação de argumentos sobre pontos divergentes não dá mais peso à hipótese de uma origem ligada a trabalhos de pesquisa.
Não há evidências de um acidente de laboratório
Se houvesse provas de que um laboratório em Wuhan possuía um progenitor do SARS-CoV-2 no final de dezembro de 2019 – em outras palavras, um vírus idêntico ou praticamente idêntico ao SARS-CoV-2, então a hipótese de um acidente de laboratório teria muito mais peso.
Em 2007, por exemplo, durante uma epidemia de febre aftosa no sul da Inglaterra, o sequenciamento do vírus rapidamente direcionou a busca por sua origem para os laboratórios de alta segurança nas proximidades, que estavam trabalhando em um vírus semelhante – a investigação culpou canos defeituosos. Para a pandemia de COVID-19 não há nenhum vírus conhecido que possa ter desempenhado o papel de progenitor do SARS-CoV-2 em um laboratório.
Portanto, se o SARS-CoV-2 for resultado de um acidente de pesquisa, ou ele é um vírus natural que não foi caracterizado e os próprios pesquisadores não sabem nada sobre ele, ou o vírus foi caracterizado, mas sua caracterização não foi publicada (seja porque a caracterização era então recente ou porque fazia parte de um programa secreto), e os pesquisadores de Wuhan ainda o mantêm em segredo.
Em particular, se o vírus foi diretamente modificado geneticamente em laboratório, então sua sequência genética já deveria ser conhecida antes da pandemia, e há pessoas que tiveram acesso a ela. Em 2021, no entanto, a comunidade de inteligência dos EUA determinou que as informações disponíveis indicavam que os pesquisadores do WIV não tinham conhecimento do SARS-CoV-2 antes do surto de Wuhan. Ausência de prova não é prova de ausência, mas o fato é que, neste estágio das discussões, não há evidências ou dados concretos para apoiar a hipótese de modificação em laboratório.
Dependendo do cenário, também existem especulações sobre conspirações fora do laboratório, na China ou no exterior. Um relatório de um comitê do Senado dos EUA propôs um cenário totalmente chinês envolvendo o desenvolvimento de uma vacina com um pesquisador de Pequim cuja morte em 2020 é vista como suspeita.
Outros cenários envolvem uma ONG, a EcoHealth Alliance, que estava trabalhando com o WIV para coletar coronavírus na natureza e estudá-los em laboratório, antes de seu financiamento ser abruptamente cortado a pedido de Donald Trump no primeiro semestre de 2020. Agora um bode expiatório, o presidente da EcoHealth Alliance foi desde então banido do financiamento federal por cinco anos. Ele foi acusado de, entre outras coisas, não ter relatado os resultados de um experimento sobre um coronavírus quimérico com a rapidez necessária, ter enviado um relatório com atraso e não ter fornecido os cadernos de laboratório do WIV.
O alvo final desses cenários de conspiração com os EUA é Anthony Fauci. Ex-conselheiro da Casa Branca para a pandemia de COVID-19, ele também chefiou o órgão financiador da colaboração entre a EcoHealth Alliance e o WIV, e é acusado de ter assinado o financiamento dessa pesquisa. As acusações vão ainda mais longe: de acordo com um relato, Anthony Fauci também procurou pôr fim a qualquer discussão sobre a origem da pandemia de COVID-19 e forçou os pesquisadores que estavam fazendo perguntas sobre o assunto mudarem de ideia, recompensando-os com um financiamento generoso – esse não é o caso.
Antecipando a vingança de seu sucessor e dos republicanos, Joe Biden concedeu preventivamente um perdão presidencial a Anthony Fauci, mas desde então Donald Trump removeu seu serviço de proteção pessoal, e o senador republicano Rand Paul prometeu continuar a sua campanha de acusações contra Fauci.
Origem natural também é difícil de provar
A multiplicidade de cenários para a hipótese de um vazamento de laboratório se deve aos poucos dados e evidências sobre a origem do vírus. Diante disso, quase tudo é possível. Os dados disponíveis, no entanto, apontam para uma origem natural ligada à venda de animais no mercado de Huanan, em Wuhan. Esses dados são múltiplos e provêm de várias fontes chinesas; as residências dos primeiros casos estão localizadas ao redor do mercado, independentemente de os casos estarem ou não epidemiologicamente ligados ao mercado; as duas primeiras linhagens do SARS-CoV-2 foram detectadas no mercado; finalmente, usando dados gerados pelo Centro de Controle de Doenças da China (China CDC), conseguimos confirmar que animais como cães-guaxinim e civetas – espécies já implicadas na SARS na virada do século – estavam presentes no canto sudoeste do mercado, onde o SARS-CoV-2 também foi detectado com frequência.
No entanto, os cães-guaxinim e as civetas presentes no mercado já haviam sido evacuados quando a equipe do CDC da China chegou para coletar amostras, apenas algumas horas após o fechamento do mercado. Não há nenhum vestígio de um animal infectado, pois não foram recolhidas amostras dos animais. A prova definitiva que algumas pessoas estão esperando talvez nunca seja obtida. Mas ela colocará um fim à discussão? É duvidoso: seria preciso provar ainda que os animais eram a fonte da contaminação, e que não foram infectados secundariamente por humanos; e ainda se poderia argumentar que os animais vieram do laboratório. Em suma, a história é interminável.
Enquanto isso, a questão da origem da pandemia permanecerá na arena pública sob o comando de Trump. O senador Rand Paul, agora chefe do Comitê de Segurança Interna e Assuntos Governamentais (HSGAC), tem feito disso seu cavalo de batalha. A retirada do sigilo de informações da comunidade de inteligência dos EUA seria bem-vinda para finalmente podermos avaliar os méritos das várias avaliações. Mas, ao mesmo tempo, vários pesquisadores estão na mira do novo governo, e é de se temer que a busca por culpados pela pandemia de COVID-19 faça vítimas inocentes.