O Pantanal, a maior planície alagável do planeta, com mais de 250 mil km², é muito mais do que um santuário ecológico. Esse mosaico de biomas — que mistura elementos da Amazônia, do Cerrado brasileiro e do Chaco paraguaio e boliviano — guarda uma história profunda de interação entre humanos e meio ambiente, evidenciada por estruturas elevadas chamadas de aterros.
Essas elevações artificiais, também conhecidas como “Morobohó” pelos Guató, datam de até 3 mil anos e representam marcos fundamentais da ocupação humana em um dos ecossistemas mais complexos e cambiantes do planeta.
Compreender os aterros é fundamental para preservar não apenas o patrimônio arqueológico, mas também as próprias dinâmicas ecológicas do Pantanal. Essas estruturas não são apenas testemunhos de um passado distante, mas também elementos ativos na manutenção da biodiversidade que considere também o passado recente e o tempo presente.
O que são os aterros?
Os aterros são construções feitas pela mão humana, compostas por terra, conchas, fragmentos de cerâmica, ossos de animais e, ocasionalmente, restos humanos. Essas estruturas compactas foram construídas para permitir a habitação em uma região onde água e terra constantemente se misturam.
Além de servirem como locais secos de moradia, os aterros abrigam áreas de cultivo e são áreas importantes para a fauna, como é o caso do sítio Jacarezinho, atualmente um santuário de aves. Hoje, os aterros são os refúgios prediletos para as onças e outros animais, abrigando uma flora para uso alimentar, tecnológico e medicinal, compreendida como resultante do manejo humano no passado longínquo e passado recente.
Conexão entre passado e presente
Hoje, o Pantanal é a casa de inúmeros povos indígenas que o habitam há milênios ou desde períodos menos longínquos. Entre eles estão os Boe Bororó do Cabaçal e Campanha, conhecidos pelas aldeias circulares descritas pelo etnógrafo Claude Lévi-Strauss; os Guató, canoeiros que ainda constroem aterros na região; os Terena, prováveis migrantes da Amazônia; os Chané/Guaná e os Guarani, que chegaram ao Pantanal no fim do período pré-colonial; os Mbyá-Guaicuru, que se expandiram a cavalo após a chegada dos europeus no século XVI; os canoeiros Paiaguá, “senhores do rio Paraguai”; e os Chiquitano, formados pela união nas missões de diversos povos indígenas da região.
Os aterros conectam um profundo passado arqueológico a um período colonial posterior. Levantamentos recentes indicam que a prática de produção de aterros ainda ocorre entre os Guató, dentro e fora das Terras Indígenas. Esses aterros vivos possuem funções variadas, como moradia, enterro dos mortos, cultivo e melhor acesso à pesca. Essa prática de construir aterros evidencia uma relação profunda e duradoura com o ambiente, adaptada às condições dinâmicas do Pantanal.
Curiosamente, ao contrário de outras regiões amazônicas, onde estruturas de terra frequentemente indicam sociedades hierarquizadas, os aterros no Pantanal mostram um caminho diferente. As grandes obras de engenharia hidráulica, como os “Morobohó”, foram construídas por meio de mutirões, refletindo uma organização social baseada na reciprocidade.
Ameaças climáticas
Hoje, o Pantanal e todos os seres humanos (indígenas e ribeirinhos) e não-humanos que o habitam correm risco de desaparecer devido às mudanças climáticas de influência humana, que levam a secas prolongadas, assoreamento dos rios e incêndios florestais frequentes, colocando em risco essa herança natural e cultural.
O fogo, que hoje destrói, antigamente ajudou a moldar o Pantanal e os diferentes biomas do continente. Ele permitiu a abertura de clareiras, onde as plantas preferidas pelos humanos eram manejadas e prosperaram. Essas áreas cultivadas, quando abandonadas, transformaram-se em matas ricas em fauna, chamadas de florestas humanizadas pelos indígenas.
Explorações arqueológicas
Nossa pesquisa, A História Profunda dos Aterros do Pantanal, investigou diversos aterros na Estação Ecológica de Taiamã (MT), durante expedições científicas realizadas em 2023 e 2024. Gerida pelo ICMBio, essa unidade de conservação, localizada no rio Paraguai a jusante da cidade de Cáceres, marca o início da grande planície alagada, conhecida pelos primeiros invasores europeus como Lagoa dos Xaraés.
As escavações realizadas na Estação revelaram dados fascinantes sobre esses sítios arqueológicos.
No sítio Bananalzinho Bororo, as escavações identificaram materiais arqueológicos datados pela técnica de carbono 14 entre 350 e 530 anos atrás. Entre os achados estão cerâmicas, machados polidos de pedra, inúmeras pontas de flecha confeccionadas com ossos de animais e possíveis pingentes de dentes de onça e de humanos. As lentes de carvão vegetal e sedimentos queimados sugerem a presença de antigas estruturas de combustão ao redor das áreas de vivenda, o que pode indicar fogueiras para o preparo de alimentos e de artefatos, como vasos cerâmicos.
No sítio Mata Escura, as descobertas incluem um enterramento humano com adornos, como um pingente de pedra trapezoidal, além de três vasilhas cerâmicas intactas. A grande concentração de gastrópodes (um grupo de moluscos) nos primeiros níveis do solo indica seu uso como material construtivo. Esse sítio, como também o Bananalzinho Bororo, possui na sua vegetação a figueira (Ficus spp.), planta diagnóstica dos aterros, dada a importância das suas raízes na estruturação do aterro.
Um apelo à conservação
A pesquisa faz parte do Projeto Paraná-Amazonas (PROPAM), com financiamento da Wenner Gren e do Projeto Universal do CNPq. Essa pesquisa busca não apenas desvendar as relações entre os povos antigos e seu ambiente, mas também sensibilizar a sociedade para a importância de preservar essa rica história nesse bioma, que é Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO.
O projeto é fruto de uma parceria entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Universidade Nacional de La Plata (Argentina), o Centro de Investigações Científicas e Transferência de Tecnologia para a Produção (Diamante, Argentina), a Universidade do Estado de Mato Grosso, Universidade Federal do Mato Grosso, o Instituto Homem Brasileiro, a Universidade Nacional de Brasília e a PUC-Goiás.
Com o apoio dessas instituições do Brasil e da Argentina, os pesquisadores continuam trabalhando para aprofundar nosso entendimento sobre o Pantanal e promover sua conservação. O Pantanal é um testemunho vivo da interação entre natureza e cultura. Preservá-lo é garantir que futuras gerações possam aprender e se inspirar em sua rica história.